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1º tipo de adaptação: de poesia para curta Meus oito anos – Casimiro de Abreu (1839-1860) Obras: Poesia: Primaveras (1859).

Oh que saudades que tenho
da aurora da minha vida
da minha infância querida
que os anos não trazem mais !

Que amor, que sonhos, que flores,
naquelas tardes fagueiras,
à sombra das bananeiras,
debaixo dos laranjais.

Como são belos os dias
do despontar da existência !
Respira a alma inocência,
como perfume a flor.

O mar é lago sereno,
o céu um manto azulado,
o mundo um sonho dourado,
a vida um hino de amor !

Que auroras, que sol, que vida
que noites de melodia,
naquela doce alegria,
naquele ingênuo folgar.

O céu bordado de estrelas,
a terra d’aromas cheia,
as ondas beijando a areia
e a lua beijando o mar !

Oh dias de minha infância,
oh meu céu de primavera !
que doce a vida não era
nessa risonha manhã.

Em vez das mágoas de agora,
eu tinha nessas delicias
de minha mãe as carícias
e beijos de minha, irmã !

Livre filho das montanhas,
eu ia bem satisfeito,
pés descalços, braços nus,
correndo pelas campinas
à roda das cachoeiras,
atrás das asas ligeiras
das borboletas azuis!

Naqueles tempos ditosos
ia colher as pitangas,
trepava a tirar as mangas
brincava à beira do mar!

Rezava as Ave Marias,
achava o céu sempre lindo
adormecia sorrindo
e despertava a cantar !

Oh que saudades que tenho
da aurora da minha vida
da minha infância querida
que os anos não trazem mais !

Que amor, que sonhos, que flores,
naquelas tardes fagueiras,
à sombra das bananeiras,
debaixo dos laranjais!

Filme “Meus 8 anos” de Humberto Mauro, 1956.

 Comentários

Vê–se claramente que MAURO opta por:

–         reproduzir o clima poético de Casimiro, ao invés de sua literalidade.

–         Exprimir a atitude geral de saudade do personagem, através do recurso cinematográfico do flash back.

Ao fazer sua adaptação, MAURO escolhe os objetos e situações mais significativos do texto e procura visualizá-los, numa sequência que não obedece à ordem “de entrada” da poesia.

Elimina uma estrofe como visualmente expletiva e não interpreta ao pé da letra expressões como “à sombra dos laranjais” e “trepava a tirar as mangas”. No lugar de laranjal aparece a grande árvore sobre a qual o homem de meia idade lembra de sua infância. E ao invés de tirar as mangas, MAURO nos mostra o menino colhendo jabuticabas.

1. Planos

Ao fechar os planos gradativamente sobre o personagem, MAURO (PMC-PM-PA-PP) nos convida a entrarmos na intimidade da memória daquele homem.

É notável o contraste entre os planos fechados do homem pensando em seu passado e os planos abertos de sua infância

Os planos de detalhe de um tema não existente na poesia, mas comuníssimo na vida de uma criança é o jogo de bolinhas de gude.

Outros planos que não aparecem literalmente na poesia: a cachoeira, o menino na rede, os cabritos lutando, as pernas de pau.

2. Composição

MAURO capricha no equilíbrio entre as massas (o menino pequenino e os vastos espaços da fazenda onde ele vive).

Usa recurso de câmara bem baixa, sem perder a simplicidade (no corte do ramo de flamboaiã e no menino colhendo… jabuticabas (ao invés de mangas, como queria CASIMIRO).

3. Movimentos de câmara

Os movimentos de câmara (especialmente os iniciais) seguem o movimento do menino, sempre no mesmo sentido, o que dá leveza e espontaneidade ao corte entre imagens. Isto conduz o filme “para frente” de modo ágil e direto.

Além disso, para “mudar de assunto”, MAURO usa um recurso radical e ousado: periodicamente (mas sem exagero), ele faz uma varredura rapidissíma de câmara (na gíria cinematográfica, usa o efeito de “rabo de galo”), entre um local e outro onde o menino brinca.

4. Montagem

O ritmo do corte é perfeito. MAURO mescla, na trilha sonora, música, recitação e canto, tornando o ritmo bastante leve e variado, o que prende a atenção do espectador.

Já se frizou o uso do flash back como o recurso de montagem que dá unidade ao filme.

No final a lembrança do homem era tão forte que por dois ou três passos ele ainda sente no tornozelo a dor da queda que levara da “perna-de-pau”, quando menino.

 

Expressionismo no Cinema

(Tradução do Dictionaire du Cinéma Larrouse,  por Paulo Antônio Pereira)

Pesquisa estética e temática que aparece na produção austro-alemã, entre 1913 e 1933.

Estas datas extremas procuram abarcar exemplos de uma tendência e de seus filmes, que vai desde O Estudante de Praga, realizado pelo dinamarquês Stellan Rye em 1913, interpretado por Paul Wegener, no mesmo ano em que Max Reinhard estreou no cinema, com uma tentativa sem futuro chamada Ilha dos bem-aventurados, até 1932, com Atlântida de G.W. Pabst, e 1933, com O testamento do Doutor Mabuse, de Fritz Lang, onde se refletem as singularidades do expressionismo.

É preciso dizer que não se trata de uma escola ou de um movimento consciente e teorizado.

De fato, o expressionismo vem da interrelação das pesquisas de vanguarda no teatro e em outras artes plásticas ligadas à renovação literária. Ele chega ao cinema pelo viés de uma temática esboçada pelo romantismo, que gera a angústia, o horror e o desdobramento (duplo “eu”), através de histórias e lendas de fundo germânico e judeu, como pode ser encontrado, por exemplo, nos dois Golem de Wegener (1914 e 1920) e no Fausto  de Murnau (1926).

1338569828_metropolis23É possível verificar o ressurgimento destes temas e do mesmo clima em grandes filmes como Nosferatu, o Vampiro (F.W. Murnau, 1922) ou Metrópolis (Fritz Lang, 1927). O expressionismo parece uma profecia a respeito do aparecimento do nazismo nos anos subseqüentes, com as tragédias políticas por ele gerado.

Lang, no entanto, nunca se considerou expressionista. Murnau, Pabst, Wegener, Leni (O Gabinete das Figuras de Cera, de 1924), além do romeno Lupu Pick, não foram senão por pouco tempo sensibilizados pelo expressionismo puro, do modo como o podemos definir.

Historicamente, a primeira tentativa de expressionismo na tela (O Gabinete do Doutor Caligári, de Robert Wiene de 1919), está relacionada com as pesquisas plásticas surgidas de movimentos denominados A Ponte, fundado por Kirchner em Dresden em 1905, e O Cavalo Azul, constituído em Munique em 1912 por Kandinsky, Klee e Marc.

O roteiro de Calgári dá primazia ao décor, influência direta do teatro, mas isso conduz a um impasse: o cinema não pode se submeter ao cenário de teatro, sem comprometer e até mesmo perder sua própria forma de relação com o espaço, além de sacrificar a liberdade que a câmara exige, o que ocorreu com cenários expressionistas, já desde o segundo Golem de Weneger.
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Lotte H. Eisner, por purismo, se restringe a três filmes, para ilustrar o que costumamos chamar de caligarismo. O expressionismo ultrapassou muito O Gabinete do Doutor Caligári, assim como Do amanhecer ao Meio-dia, de Karl Heinz Matin, de 1920, e O Gabinete das Figuras de Cera.

 Também permitiu que se passasse do barroco ao romantismo escandinavo de Sjöberg e Sjöstrom, então muito influentes, e ao Kammerspiel (teatro de câmara), bem como ao realismo, desde os primeiros filmes de Murnau até O Último dos Homens.

 O expressionismo propôs a sistematização da deformação das perspectivas do cenário e dos personagens, o exagero, os contrastes (principalmente os de iluminação), a gesticulação e os efeitos de máscaras e silhuetas, e até metamorfoses alegóricas portadoras de angústia e de horror.

Nem Wegener nem Murnau nem Lang se deixaram prender por tal sistematização. As carreiras de um Joe May ( O túmulo hindu, de 1921) ou de um Arthur Robison (O exibidor de Sombras, 1923) foram curtas.

A influência do expressionismo, a que a URSS por algum tempo foi susceptível, rapidamente se diluiu, mas não é exagero afirmar que traços dele podem ser encontrados nos efeitos de iluminação e de enquadramento do cinema noir norte-americano, nos filmes de Robert Siodmak, por exemplo, e em Sam Fuller ou Orson Welles.

Discurso de inauguração do Curso de Cinema da Universidade Católica de Minas Gerais em 14/12/1962

por Humberto Mauro

Por muito que eu pecasse pela ambição, por longe que tenha levado essa ambição, jamais poderia imaginar que merecesse a dignidade com que me revestiu o convite de Sua Reverendíssima, o Bispo Dom Serafim Fernandes de Araújo.Humberto Mauro 3

E devo confessar que o relevo dessa horaria e desse convite cresce de vulto para mim pela circunstância de que a tradição católica da minha família, na qual me criei e eduquei os meus filhos, como que recebe agora uma expressiva consagração pública.

Desejo ainda agratular-me com a Universidade Católica de Minas Gerais pela iniciativa de incluir entre as suas atividades um Curso de Cinema, pondo mais uma vez, na vanguarda dos movimentos culturais e educacionais do Brasil, o grande Estado de Minas Gerais, onde nasci, onde me criei e onde ensaiei roteiros,  nessa luminosa aventura do cinema brasileiro que hoje me vale a inestimável alegria de estar aqui, diante de vós, não para uma aula, nem para uma conferência.

A variedade infinita de assuntos que o cinema proporciona a quem queira falar sobre cinema levou-me a escolher, para essa palestra conversada, três aspectos sobre os quais procurei tecer algumas considerações: o chamado grande cinema, o documentário, e o cinema educativo, ao qual venho dedicando o melhor da minha vida há vinte e cinco anos no Instituto Nacional de Cinema Educativo, fundado pelo professor Roquette-Pinto.

Com a minha experiencia, cheguei a conclusão de que, em qualquer dessas três modalidades, os melhores resultados são sempre obtidos quando se aplica a técnica do cinema puro, fundamental, ou clássico, isto é, do cinema que tem a sua linguagem própria e que é aquele cinema feito apenas com os elementos sem os quais não é possível fazer cinema.

Assim como não pode haver escultura sem a massa conformada pelo homem; nem pintura sem cor; nem música sem combinação de sons; nem literatura nem poesia sem palavras oral ou escrita; nem teatro sem a presença física do homem e sem o diálogo; assim também não pode haver cinema sem a fotografia em movimento.

A velha a fiar
A velha a fiar

Puro porque estreme de concorrentes dispensáveis, a rigor; fundamental, porque é nesses meios de expressão, imprescindíveis, que se assenta a arte cinematográfica; clássico porque é modelo.

O subentendimento é, em última análise, o problema da forma. Artista e escritores, em especial os estilistas, fizeram sempre alusão à tortura da forma. Sabido que a expressão, por natureza, é insuficiente para revestir o sentimento e a ideia em toda a sua plenitude e profundeza: procura-se o meio expressivo que consiga provocar maior riqueza de associação, quer emotiva, quer intelectual. O cinema precisou superestimar o submetimento, talvez por ser a fotografia uma reprodução servil do meio físico, para valorizar o contingente de imaginação e de sensibilidade que toda a obra de arte deve contar, e a arte, definida sob certo aspecto, é a interpretação da natureza através de valores estéticos. Assim sendo, tornou-se imperioso, embora se afigure paradoxal, sugerir mais, onde, exatamente, a forma se apresenta riquíssima, excetuada a terceira dimensão.

Tudo o que fizer, porém, deverá estar submetido a um princípio básico: o do respeito ao público – principio sempre observado pelos grandes diretores do mundo inteiro -; porque é sábio que o público, vendo, julga e aprende. Já Horácio, quatorze ou treze anos antes de Cristo, afirmava: Segnis irritant animos demissa per aurem, quam quae sunt oculis subjecta fidelibus, et quae ipse sibi tradit spectador. Ou, na tradução de Cândido Lusitano (Lisboa, 1781): E é certo que o que vem pelos ouvidos mais frouxamente os ânimos comove, que o que vem pelos olhos, testemunhas sempre fiéis, que fazem com que o povo julgue, e aprenda per se.

O conceito do autor da Arte Poética está hoje plenamente atualizado e a moderna pedagogia do audiovisual nada mais é do que a aplicação desse conceito, porque, na realidade, nem eu mesmo sei os limites que separam as diversas modalidades de cinema – o chamado Grande Cinema, o cinema documentário, o cinema educativo e, até mesmo, o mau cinema. Porque todos eles podem educar… ou mal-educar….

Na minha opinião, porém, o primeiro, esse a que chamamos Grande Cinema, é o que dispõe de maior soma de recursos e de maior alcance, para a educação do povo.
Sempre fui um grande admirador do documentário, modalidade de cinema que tem permitido maior liberdade de ação aos cineastas, tolhidos pelo comercialismo excessivo dos filmes normais. No filme curto é que eles se têm refugiado, muitas vezes, para inovações que nunca seriam permitidas pelos financiadores do cinema de longa-metragem.

Os problemas de cinematografia como indústria e comércio são totalmente diversos dos problemas de cinematografia educativa, escolar, de pesquisa científica. A primeira destinando-se ao público em geral, deve ter, obrigatoriamente, características nacionais, mas não pode isolar-se do imenso entrechoque de interesses suscitados no plano internacional pelas questões que envolve. A segunda dedica-se especialmente ao ensino em todos os seus graus e modalidades, é instrumento de trabalho do professor, do educador, do cientista; por isso mesmo, deve manter-se afastada daqueles conflitos e estar permanentemente sob vigilância e cuidados especiais.

"Cinema é cachoeira"
“Cinema é cachoeira”

A cinematografia industrial e comercial trabalha, de um modo geral, como todos nós sabemos, à base de empresa, visando, necessariamente, lucros. O cinema educativo dedica-se exclusivamente a concorrer para que o maior número de pessoas e, portanto, o próprio país, aufiram os lucros insubstituíveis da educação, da ciência e da cultura.

O cinema industrial usa técnicas próprias de produção, de distribuição e de exibição, que não podem estar subordinadas senão ao livre jogo de seus interesses, dele resulta seu desenvolvimento normal. Ao contrário, as técnicas utilizadas pelo cinema educativo estão em função de finalidades totalmente diversas.

É de notar que esses radicais diferentes de técnicas nos dois casos fazem com que as grandes empresas produtoras do cinema industrial, mesmo nos países adiantados, não se interessem pela produção do filme escolar, incumbindo-se dessa produção organizações industriais especializadas.

O cinema industrial utiliza, em suas equipes de produção, cineastas e artistas com formação peculiar; o cinema didático depende, fundamentalmente, de professores, educadores, cientistas e pesquisadores. Os processos de trabalho são, como facilmente se percebe, totalmente diversos, não podendo pois, ser manejados com eficiência por uma direção.

Na confecção do filme industrial, os métodos de trabalho e as características a serem obtidas são totalmente diferentes dos que se aplicam ao filme escolar. No filme escolar, de um modo geral, há minúcia na análise do assunto, pois que se trata, quase sempre, de uma verdadeira aula, em forma própria.

Já no filme industrial – digamos, no chamado grande cinema – a força está quase na síntese, no subjetivismo, no ritmo peculiar e, sobretudo, no subentendimento, isto é, na descrição em si do argumento, mas aquilo que ele sugere – sistema em que distingue e consagra o cineasta.

Daí decorre a utilização de técnicos de formação completamente diferente, mesmo para as operações comuns aos dois tipos de produção: diretores, argumentistas, cenaristas etc. têm que estabilizar-se com exclusividade em cada um desses tipos e dificilmente poderão incumbir-se, ao mesmo tempo, com bons resultados, das duas atividades.

Em resumo, todas essas profundas diferenças nos dois domínios da produção cinematográfica, que podem ser muito mais amplamente do que aqui examinados até os mínimos detalhes, torna absolutamente inconveniente qualquer subordinação de um a outro, sob pena de ficarem ambos irremediavelmente prejudicados.

E um Curso de Cinema não podem nem devem ignorar isso, para que a sua orientação se processe quer num, quer outro sentido, e mesmo em ambos, mas, nesse caso, separadamente.

Como conselho extraído da experiência de um velho cineasta, o que devo dizer aos que pretendem estudar cinema é que façam cinema. Sem fazer, não se aprende. Mas fazer cada um por si mesmo, obedecendo a sua própria concepção, ao seu estilo pessoal, sem subordinação, mas respeitando sempre os princípios básicos da temática material que será a realização mecânica, e da técnica mental que se baseará na adaptação, à linguagem cinematográfica, da continuidade do filme.

Mas tudo isso sem aflição…

(*) Uma testemunha ocular, no entanto, Prof. Hélio Márcio Gagliardi, que era calouro desta turma inaugural, afirma que Mauro, tão logo “sentiu-se em casa” diante da platéia, improvisou muita coisa além do texto escrito que trazia consigo. A data da aula seria na verdade 19 de março de 1962 e não 14 de dezembro de 1962, como aparece no livro. A fala foi toda gravada, e o mesmo Prof. Hélio tem consigo a fita original. Foi dela que veio a citação acima, não do texto publicado. O local exato do pronunciamento de Mauro foi o Salão Nobre do Banco de Crédito de Minas Gerais (hoje Unibanco), na Rua Espírito Santo, nº 527 bem no centro da cidade (Belo Horizonte, Minas Gerais).

Cinema e conto literário

SITUAÇÃO E FORMAS DO CONTO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

Resumo do Prefácio de Alfredo Bosi para o livro

O conto brasileiro contemporâneo – 14ª edição – São Paulo Editora Cultrix – 1997

O conto (…) tem assumido formas de surpreendente variedade. Ora é quase-documento folclórico, ora a quase-crônica da vida urbana, ora o quase-drama do cotidiano burguês, ora o quase-poema do imaginário às soltas, ora, enfim, grafia brilhante e preciosa votada às festas da linguagem.o-conto-brasileiro-contemporneo-alfredo-bosi_MLB-O-223474519_7242

(…) Se comparada à novela e ao romance, a narrativa curta condensa e potencia no seu espaço todas as possibilidades da ficção. E mais, o mesmo modo breve de ser compele o escritor a uma luta mais intensa com as técnicas de invenção, de sintaxe compositiva, de elocução; daí ficarem transpostas depressa as fronteiras que no conto separam o narrativo do lírico, o narrativo do dramático.

(…) Quando à invenção temática, o conto tem exercido, ainda e sempre, o papel de lugar privilegiado que se dizem situações exemplares vividas pelo homem contemporâneo.
(…) Se o romance é um trançado de eventos, o conto tende a cumprir-se na visada intensa de uma situação, real ou imaginária, para a qual convergem signos de pessoas e de ações e um discurso que as amarra.

(…) A invenção do contista se faz pelo achamento (invenire = achar, inventar) de uma situação que atraia, mediante um ou mais pontos de vista, espaço e tempo, personagens e trama.

(…) O tema |do conto| já é, assim, uma determinação do assunto e, como tal, poda-o e recorta-o, fazendo com que rebrote de forma nova.

(…) Há uma relação muitas vezes agônica entre a opção narrativa e o mundo narrável. (…) Aquém da tensão, o conto não passa de crônica, (…) lugar comum mais ou menos gratuito.
Cruzado por dentro o limiar do tema, é necessário conhecer o registro a que vai ser submetida a matéria;

se (1) realista documental ,
se (2) realista crítico,
se (3) intimista na esfera do eu (memorialista),
se (4) intimista na esfera do id (onírico, visionário, fantástico),
se (5) experimental no nível do trabalho lingüístico e, neste caso, centrífugo e, à primeira vista, atemático.

(…) O contista é um pescador de momentos singulares cheios de significação. Inventar, de novo: descobrir o que os outros não souberam ver com tanta clareza, não souberam sentir com tanta força.

(…) É muito provável que o conto oscile ainda por muito tempo entre o retrato fosco da brutalidade corrente e a sondagem mística do mundo, da consciência ou da pura palavra. (P7a22).

A MONTAGEM CINEMATOGRÁFICA E A LÓGICA DAS IMAGENS
de Maria de Fátima Augusto – São Paulo – Annablume; BH FUMEC – 2004

Para o nosso propósito, escolhemos alguns cineastas que, de acordo com a proposta deleuziana, representam com suas teorias e filmes a originalidade de cada escola de montagem. Analisamos:

(1) Griffith e a montagem orgânica do cinema americano;
(2) Eisenstein e Vertov, a montagem dialética da escola soviética;
(3) Epstein e Gance, a montagem impressionista do cinema francês do pré-guerra;
(4) Lang, Wiene e Murnau e a montagem expressionista do cinema alemão;

(…) No capítulo II analisamos (5) a crise da imagem-ação. (…) Ocorre a substituição da imagem-movimento pela imagem-tempo.(…) As imagens não se encadeiam mais por cortes racionais mas se reencadeiam com base em cortes irracionais. (Cidadão Kane, Limite, Hirochima, mon amour, Grenaway, Antes da chuva). (p. 20 a 22).

paraleloFilme realista documental com montagem orgânica.
Exemplo: ¨Cabra marcado para morrer¨.
Filme realista crítico, com montagem dialética.
Exemplo: “O dia em que Dorival encarou a guarda”. – ¨Encouraçado Potemkin”, de S.M.Eisenstein
Filme intimista na esfera do eu, com montagem impressionista.
Exemplo: “Meus oito anos” – ¨Limite¨ (de Mário Peixoto)
Filme intimista na esfera do id, com montagem expressionista.
Exemplo: “Barbosa”
Filme experimental, com cortes “irracionais” (literatura por literatura, cinema pelo cinema; a montagem não se rege por uma narrativa). Exemplo: ¨Chien Andalou¨, de Buñuel.

ESTRUTURA DE ROTEIRO E MONTAGEM

D.W. Griffith, ca. 1908.
D.W. Griffith

        Analogando com aquilo que BOSI diz a respeito do conto literário, uma obra de cinema pode optar entre cinco alternativas de construção de seu eixo estrutural, pois pode propor-se a: a)descrever fatos; b) interpretar fatos; c) descrever memórias; d) descrever mitos, sonhos, visões, reações emanadas do inconsciente; e) descrever puras imagens abstratas do movimento.

Consequentemente, a forma de montagem ou de estruturação visual do filme poderá seguir uma destas cinco alternativas, conforme obedeçam ou não a princípios de associação, contigüidade, semelhança, contraposição:

a) montagem clássica (pudovkiana, griffitiana, hollywoodiana), com continuidade espaço-temporal e narrativa linear (filme que se estrutura por descrição e/ou narrativa): é a forma de montagem mais comum no cinema; procura disfarçar a presença da câmara, tornando-a como que “transparente” para o espectador, criando assim uma espécie de “realismo” cinematográfico, ao tentar reproduzir ao máximo o modo de ver (e participar de ações) natural das pessoas, é o cinema diegético;

b) montagem dialética: importa explicitar a contradição, suscitar idéias, usando-se a câmara como instrumento de crítica e conscientização social, política e estética; é o cinema político e ideológico;

c) montagem expressionista: a interpretação visual dos acontecimentos apresentados na tela são mais importantes que os próprios acontecimentos. Trata-se de dar uma presença forte às luzes, linhas, massas, movimentos e articulações de planos, de modo a ressaltar mais o “estado de alma” (o inconsciente) dos personagens do que suas ações propriamente ditas. A interpretação visual (dramática) dos fatos é mais importante que seu conteúdo; é o cinema da admiração e do estupor;

d) montagem impressionista: trata-se de apresentar as imagens como uma sequenciação visual emanada da memória e da interpretação subjetiva do personagem. O que importa não são os fatos, mas a impressão que os fatos deixam no personagem, a memória provocada pelos fatos no personagem; para isso, a luz transforma-se num fluido contínuo e evocativo: é o cinema intimista;

e) montagem puramente imaginal: uma imagem “sai” ou segue-se a outra como um continuum visual puro, sem figurativismo, como pura imagem do movimento, sem história, sem descrições, sem evocações, a não ser as meramente estéticas: é o cinema abstrato. É a pura arte da imagem do movimento (ou do tempo).

Um modo de pensar e fazer cinema

por Paulo Antônio Pereira

O cinema como processo criativo

As artes, as ciências e as tecnologias (ciências aplicadas) têm sido os espaços privilegiados para a expansão da criatividade. E foi justamente o entrecruzamento destas três áreas de atividade que fez aparecer um dos fenômenos mais significativos do século XX: o cinema.

E o que é cinema?
É arte tecnológica, indústria cultural, meio de comunicação de massa, cujo sinal é a imagem registrada em película fotográfica ou disco digital que, uma vez projetada em ritmo intermitente numa tela, em ambiente escuro, diante de uma platéia, causa no espectador a ilusão de ótica da reprodução mecânica do movimento.Imagem-do-curso-História-do-Cinema2

A explicação de cada termo desta (longa) definição comprova a origem híbrida e rica do cinema.

Cinema é arte. Arte é toda forma de expressão que pretende provocar num público (receptor) a experiência estética. Como forma de expressão, isto é, como modo de dizer e comunicar-se, a arte é a manifestação de sinais perceptíveis tantos pelos sentidos externos (em especial do tato, da visão e da audição) como pelos internos: imaginação e memória.
E arte é fenômeno comunicacional, pois quem faz arte procurar sensibilizar um público. Sem esta percepção por parte do outro, sem este atingimento e consequente provocação de resposta por parte do outro, não há possibilidade de existir arte. Pois é através deste processo de sensibilização que pode ocorrer a experiência estética, ou seja, o encontro entre o objeto artístico (expressivo, excitante, evocativo) com o sujeito sensível à vibração que tal encontro lhe proporciona.

Manoel de Oliveira -  105 anos em 2013, ainda trabalhando
Manoel de Oliveira – 105 anos em 2013, ainda filmando

Assim como a verdade é tradicionalmente definida como o encontro do sujeito com o objeto, assim também na experiência estética há um objeto que suscita estesia e um sujeito que é capaz de admirar-se com ela e saboreá-la.

Diz-se que a experiência estética consiste num encontro com o belo. Belo é tudo que suscita admiração, por constituir-se no esplendor do ser.

O ser, enquanto objeto de conhecimento, é verdadeiro; enquanto objeto de admiração, é belo. A arte, no sentido de arte de contemplação gratuita, não de arte no sentido de produzir resultados eficientes, seria assim a capacidade e o ato de exibir-se o esplendor do ser às pessoas, às platéias, ao público, procurando fazer com que estes reajam com curiosidade, admiração, aplauso, podendo chegar ao enlevamento e até mesmo ao êxtase.
É notável saber que as primeiras manifestações da imagem do movimento provocaram no público esta reação de curiosidade diante do insólito, de pasmo diante da beleza, de aplauso, pelo prazer que causavam.

Glauber Rocha durante as filmagens de "Barra Vento"
Glauber Rocha durante as filmagens de “Barra Vento”

Ora, há muitos exemplos de obras cinematográficas que permitem esta experiência artística, que ocorre simultaneamente com a vivência do lazer, do divertimento e do passatempo, também objetivos próprios do cinema.

Fruto, porém, de uma sociedade de massas como a moderna, o cinema é indústria cultural e meio de comunicação.  Indústria, porque a produção e distribuição do filme se dão em larga escala, apesar das características artesanais de cada obra cinematográfica considerada isoladamente. Indústria cultural, porque veicula valores, hábitos, posturas de um grupo, que domina todo seu processo econômico, e se utiliza dela para expandir seus próprios valores, diante dos consumidores de seus produtos.

Cinema é meio de comunicação de massa, pois é produzido por uma pequena equipe de emissores, com a finalidade de atingir, quase simultaneamente ou em pequeno espaço de tempo, milhões de receptores, integrando uma linha de consumo que caracteriza toda produção em larga escala do mundo atual. É arma ideológica, portanto, de alto poder de impacto. Daí a estima especial que sempre gozou junto a governos e sistemas totalitários, seja de esquerda seja de direita.

Esta intimidade entre beleza e produção de riqueza e de dominação é um espetáculo a que podemos assistir através da história. Época após época, as pessoas não se contentaram em relacionar-se entre si, criar sistemas de produção coletiva, trocar idéias e exercer poder umas sobre as outras. Sempre quiseram comunicar-se através de formas artísticas. Pirâmides, palácios, não só procuravam retratar a dominação como atrair admiração, por sua grandeza e proporcionalidade estéticas.

No momento em que as relações humanas tornaram-se muito complexas, urgia criar-se um sistema simbólico versátil que facilitasse a comunicação entre as pessoas, isto é, a veiculação e troca de valores e bens culturais os mais variados, principalmente de ideologias dominantes e fixação da memória de um povo. Os sons orais, visuais e instrumentais, seguidos da escrita, que fundou a civilização, foram os meios inventados para tornar a vida mais explicitamente significativa e manifestar em público, com maior definição e clareza, a vontade das pessoas que pretendiam preservar sua memória.

Humberto Mauro
Humberto Mauro

Num mundo em que o poder tem de ser exercido por e sobre milhões de pessoas, muitas delas conscientes de seus direitos, as decisões coletivas têm de ser tomadas a partir do máximo de informação que for possível coletar e disseminar.

Os meios de comunicação modernos — jornal, cinema, rádio, TV, Internet, principalmente, hoje apelidados de media eletrônica (vez que a eletrônica já é ou tende a tomar-se o suporte de todos eles), estes meios operacionalizam, na atualidade, a veiculação da ideologia dominante, junto com o esplendor, o visual charmoso, que atrai respeito e admiração, plasmando o que hoje significativamente é chamado de imagem das instituições ou das pessoas, a face com que elas se manifestam junto e dentro da sociedade. O invólucro atraente de sua própria oferta e venda.

Muitas vezes veiculadas por tais meios ou constituindo os próprios, surgem as artes modernas de reprodução em massa, entre as quais o cinema tem sido a mais rica e universal. A produção de sinais passa a ter um volume tão grande e intenso que o fenômeno torna-se verdadeira indústria cultural de largos orçamentos.

A fotografia será a primeira tecnologia visual a assumir rapidamente o porte de arte, seguida imediatamente pelo cinema, síntese de todas as artes, e logo perfilhado, em tom variado, pelo vídeo e pela televisão.

E o cinema é arte tecnológica, eis sua primeira novidade. Beleza que sai da máquina. Estesia que nasce da ciência aplicada à comunicação, destinada a platéias de grandes números, compostas por pessoas dos mais variados perfis culturais.

Tecnologia é a aplicação do conhecimento científico à solução de problemas concretos de uma sociedade. É ciência aplicada. No caso do cinema, o estudo de sua como que pré-história demonstra o quanto foi necessário acumular-se conhecimento científico, década após década, principalmente no campo da física, da química, da fisiologia. Hoje, todas as ciências humanas estão a serviço do cinema, mesmo as posteriores à sua invenção.

Toda arte tecnológica exige, na maioria das vezes, o uso de aparato, de equipamento complexo, para a produção de seu objeto. Assim, a imagem em movimento (ilusório) do cinema é obtida graças à conjunção de vários fatores objetivos (equipamento) e subjetivos (a forma como se processa a visão humana, psicológica e psicossocialmente).
E a arte do cinema, voltada para públicos mundiais, exibe em seu perfil, junto à ubiqüidade, uma  reprodutividade ad infinitum. Uma eterna presentificação do passado, como diria Sartre.

Se uma pintura renascentista só poderia ser vista por pessoas que a visitassem em seu lugar de exposição (o intercâmbio artístico de acervos é fenômeno próprio dos museus modernos), o cinema hoje pode ser exibido em qualquer parte do mundo.

Se uma sinfonia, como expressão de arte temporal, deve receber uma nova interpretação, a cada vez que é de novo executada (o mesmo acontecendo com uma peça teatral), a tecnologia de registro do cinema permite que, teoricamente, o mesmo filme seja repetido, por décadas, com a mesma identidade visual e rítmica com as quais foi concebido e exibido ao público pela primeira vez.

Dib Lutfi rodando "Terra em Transe"
Dib Lutfi rodando “Terra em Transe”

Ao assistir à TV ou a um vídeo, as pessoas não vêem apenas as imagens que o aparato veicula. Vêem tudo o que está à volta de si: pessoas, objetos, espaços reais. Ouvem ruídos que não provêm do equipamento emissor, mas do próprio meio-ambiente em que se dá a assistência ao programa ou à peça audiovisual.

Já ao participar de um espetáculo cinematográfico, tem-se a experiência da exclusividade do ver (e do ouvir). A pessoa sai de casa, paga um ingresso para entrar numa sala especializada, senta-se junto a uma platéia composta por dezenas de outras pessoas que em geral não se conhecem, mantém-se no escuro por horas, desliga-se da vida diária, interrompe todo compromisso social, com a única finalidade de ver (e ouvir) um filme, ou seja, ter uma experiência audiovisual completamente distinta daquela que se tem no dia a dia.
A exclusividade deste ato sublinha, mais uma vez, a característica de arte do cinema, vez que, se na arte a beleza é contemplada como um fim em si mesma, no cinema o ato de ver imagens torna-se absoluto e fechado sobre si mesmo.

Magia. Indústria cultural. Arte tecnológica. Mass medium. Imagem em movimento ilusório. Reflexo da vida. Cinema é tudo isso.

E neste pouco mais de um século de existência, o cinema tem transbordado criatividade, em todos os aspectos e setores que o compõem. Considerado quer pelo seu lado tecnológico (ou de ciência aplicada), quer como arte (dotado de linguagem específica) ou mesmo como uma das media modernas (formando um complexo comunicacional-administrativo), o cinema é submetido a um desafio contínuo de inovação, pelo próprio fato de ser veículo a um só tempo de diversão e de reflexão cultural.

Donald Winnicott
Donald Winnicott

É o que se lê em Luz (1), ao referir-se aos mesmos princípios que Winnicott aplica tanto à gênese da personalidade como à origem da criatividade artística: “psicanálise e cinema: dois aparelhos produtores de ficções poderosas, duas maneiras de construir e de compreender o individuo que surge do moderno modo de vida urbano e industrial, dois espelhos através dos quais o sujeito procura reconhecer¬se”.

De fato, a imagem em movimento também é espelho; pode, ao invés de anestesiar, fazer repercutir idéias, refletir sobre elas. Pode ser catártica, mas também pode ser ferramenta de mergulho, mas sempre mergulho em profundidade: batiscafo.

Continua Luz (ibid. p.237), winnicottiano: “A criança que enfileira quatro, cinco caixotes resolve fazer desse conjunto um trem, que parte dali à toda velocidade. A viagem da criança naquele trem que ela construiu possui realidade própria. O amador de arte e o artista, o crente e o cientista, dão mostras dessa espécie de loucura. É o caso também do cineasta e do espectador de cinema.” (Ibid. p. 239)

E completa: “Na medida em que é representação viva, o cinema nos convida a refletir sobre o imaginário da realidade e sobre a realidade do imaginário”.

É o “charme” da imagem, da imaginalização, como diria Morin (1958, p.15). Tanto o cineasta como seu espectador podem comungar através da imagem, porque de ambos se exige a prévia experiência da criatividade, um, como emissor, outro, como receptor.

Por isso, é tão instigante fazer cinema: evoca motivações ocultas, energias estocadas e latentes. Não só porque o cinema exige a humildade do trabalho em equipe, da complexidade da sinfonia criativa, mas também porque o próprio ato de criar pressupõe uma experiência de brinquedo (impulso e intuição) que não se choca com o planejamento racional (playing + gaming);  e a racionalidade no trabalho, bem como o espírito de equipe, não tolhe o prazer.

De fato, o perfil do cineasta verdadeiro é fruto da síntese entre sua capacidade criativa e de sua extrema receptividade à colaboração, misto de gosto pelo brincar espontâneo, com seriedade, na observância das leis das várias ciências a serem aplicadas (tecnologia) durante o ato de fazer cinema.

Fazendo cinema
h8Ora, uma das formas de se criar um filme é a Oficina de Cinema (OC). E a Oficina de Cinema, método desenvolvido no âmbito da PUC-Minas desde 1973, consiste numa experiência integral de comunicação, na qual o participante, sem que lhe seja exigido pré-requisito algum de experiência cinematográfica, é selecionado, orientado e treinado, no sentido de compor uma equipe mínima de produção cinematográfica (com seis a oito membros), dentro e junto da qual ele escolherá desempenhar função específica, participará da definição do tema e do roteiro do filme, bem como de seu planejamento de produção, filmagem e edição, terminando por exibi-lo em evento do tipo festival, para ser avaliado por um júri composto por especialistas em comunicação e cinema.

Toda a metodologia da OC é destinada a que as pessoas possam exercer uma função dentro de uma equipe, dominando conhecimentos específicos e adquirindo habilidades através do treinamento. Por ser uma Oficina, ou seja, local de trabalho, ela segue as etapas lógicas de criação do filme: planejamento, filmagem, edição. As atividades, como se viu, são gradualmente desenvolvidas, não sendo ministrado conhecimento teórico-prático que não se refira diretamente ao projeto proposto pelo participante.220px-ARRI_16_ST_Stativ,_1

Ora, tanto a metodologia como a teoria na qual se baseia a OC foi de fato acumulada e repensada dia a dia, festival após festival. A revisão contínua dos trabalhos permitiu que se mantivesse por mais de trinta anos um processo teórico-prático iniciado com pequenas filmagens despretensiosas de um rolinho só (1973), até chegar-se à produção completa de curtas metragens em 35mm (2003), com direito a projeção profissional em cinema de circuito de arte, e produções em câmara digital (2006), com exibição em festivais internacionais.

Pode-se agora explicitar os princípios teóricos que serviram de norma e condicionaram o processo didático-pedagógico de criação de filmes da OC. Eles  podem ser enunciados a partir de pontos de vista os mais variados.

O primeiro refere-se à própria experiência criativa em equipe, que deverá pedir, de quem dela participa, o máximo de envolvimento pessoal, tanto na proposição de objetivos e meios ao se conceber um projeto, como durante a execução sinérgica de todas as fases do trabalho, respeitado a função de cada um.

Outro aspecto diz respeito à concepção básica que vai fundamentar as atividades de criação no campo do cinema. Sobre isto, pode-se afirmar:
1.    Cinema é, do ponto de vista da fisiologia, imagem em movimento (ilusório), que se processa dentro do cérebro do espectador do filme.

2.    Sendo a imagem o sinal cinematográfico básico do cinema, o som constituiu-se em elemento completar daquela imagem. Em geral, um é substantivo(a imagem), outro é adjetivo (o som)

3.    O filme é feito como um processo de comunicação entre um emissor (equipe criadora) e um receptor (o espectador), sendo este último a causa final de todo processo criativo do cinema.

4. A complexidade da criação do filme leva a equipe criadora a desenvolver um verdadeiro esforço sinérgico, não sendo o filme um produto da simples somatória de elementos díspares, de tecnologias diferentes, mas uma verdadeira síntese sinfônica entre elas. O filme, qualquer que sejam as condições de produção e os resultados obtidos, é sempre criado por uma equipe e não por indivíduos isolados.

5.    A atitude de sinfonia exigida pela criação cinematográfica pede de cada participante de equipe atitudes verdadeiramente democráticas, em que o diálogo aberto será o padrão do relacionamento, sempre centrado no objetivo de produzir uma obra comum.

6.    O filme é produto social, que se insere dentro do contexto de uma produção cultural maior, a ser oferecida a um público de largas dimensões.

7.    Toda equipe cinematográfica, profissional ou não, reflete a cultura na qual está inserida e, seja explícita seja implicitamente, faz do filme como uma espécie de resposta a uma problemática pessoal: “a boca fala daquilo de que o coração está cheio” (Mateus, 12, 34).

Quanto ao papel de quem orienta os trabalhos:
imageA função do educador que propõe a um grupo a experiência de uma atividade criativa é dupla: ministrar conhecimentos teórico-práticos, permitindo assim que o participante venha a adquirir habilidades e manifestar atitudes eficazes e eficientes, e acompanhar os trabalhos, interferindo com orientações e sugestões, sempre que julgar necessário manter a coerência de propósitos da equipe.

Quanto à metodologia de ensino e treinamento de uma equipe de criação em cinema:

1. Sendo o cinema arte tecnológica e meio de comunicação especializado de produção sinfônica, é necessário, a quem se propõe a fazer um filme, assimilar conhecimentos tecnológicos e desenvolver habilidades próprias de sua função criadora, além de ter uma noção completa, ainda que não profunda, de todas as outras funções diferentes da sua.

2.    Concretamente, uma equipe cinematográfica deverá dominar conhecimentos e desenvolver habilidades nos campos da linguagem cinematográfica e da tecnologia necessária à prática da produção de filmes, em todas as suas fases: planejamento, filmagem e edição de imagem e som.

3. Para melhor assimilação, os conhecimentos específicos, bem como as habilidades próprias da função de cada participante, serão ministrados passo a passo, na seqüência em que serão utilizados na criação do filme.

*****

Três filmes, três textos

Uma experiência envolvendo cinema e filosofia

Por Paulo Antônio Pereira

 Fiquei fascinado, a primeira vez que vi um filme de McLaren.

Norman McLaren (1914-1987) foi um cineasta de origem escocesa, que atuou, de 1941 até o fim de sua vida, no National Film Board do Canadá, um centro voltado para a criação de filmes de animação de todo tipo.

Norman McLaren
Norman McLaren

Até hoje McLaren deixa as pessoas curiosas, quando se diz que ele fazia cinema sem câmara e filmes, com som pintado!

Registrar as imagens diretamente na película transparente, fotograma por fotograma, ele já tinha aprendido com seus mestres, o inglês Stewart McAlistair e o neo-zelandês Len Lee, ainda no início da década de 30.

Em 1937 foi chamado para trabalhar em Londres, no GPO, grupo documental dos correios britânicos, cujo líder era o grande produtor John Grierson. Desenvolveu ali experiências iniciais com “som sintético” (som pintado na trilha sonora). Foi Grierson quem levou consigo McLaren para o Canadá, terminada a segunda grande guerra, para lá fundar um novo centro de cinema experimental.

Norman criou uma trilogia de curtas que, entre dezenas e dezenas de títulos, reputo notáveis: The neighbours (Os vizinhos), de 1952 (vencedor de Oscar de melhor curta de animação); A chairy tale (A fábula da cadeira), de 1957; e Adagio (1972).

Há décadas venho exibindo estes filmes, dentre muitos outros, de inúmeros autores, para os meus alunos da PUC-Minas de Belo Horizonte. No entanto, paralelamente à minhas primeiras aulas de cinema, em 1972, na que hoje é denominada Faculdade de Comunicação e Artes, eu também lecionava Filosofia para o curso de Psicologia, na mesma PUC-Minas. Isto durou até 1985, quando passei a dedicar-me exclusivamente ao ensino de cinema. Antes disto, publiquei em 1981 pela editora Vozes de Petrópolis o livro Imagens do movimento – Introduzindo ao cinema.

Ora, quando lecionava filosofia para os futuros psicólogos, redigi uma apostila, espécie de caderno de atividades (no caso, de reflexão filosófica), a fim de discutir questões de Antropologia Filosófica. Título do opúsculo: O Problema Humano.

Trata ele, numa primeira parte, das dimensões dialéticas da consciência ou da realização do ser humano e, numa segunda, dos vários riscos de alienação a que estamos submetidos, em nossa condição fundamental de finitude e fragilidade. Termina o livreto com três pequenos textos, de no máximo duas páginas cada um. O primeiro chama-se Confiança e violência; o segundo, Liberdade e Trabalho, e o último, O Amor como encontro original de consciências. Estes escritos tinham como finalidade fazer os alunos praticarem a reflexão sobre temas atuais, a partir da filosofia que lhes tinha sido passada.

A união dos filmes de McLaren com os textos de filosofia era só questão de tempo, pois uns se remetem aos outros, com o máximo de complementariedade, como se vai verificar a seguir.

A. A fábula da cadeira

A fábula da cadeira (de 1957) é um filme em preto e branco, sem palavras, com cerca de oito minutos de duração. Em sua trilha sonora, o músico indiano Ravi Shankar faz passagens musicais com sua cítara irresistível.

O filme narra episódio tragicômico, vivido por rapaz, que resolve ler seu pocket book e, para maior comodidade, resolve aboletar-se numa cadeira, que encontra, por acaso, na cena vazia.

Ocorre que a cadeira não parece disposta a “ser sentada”, e foge, sistematicamente, de todas as investidas do frustrado leitor.

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Num primeiro momento, a reação é de susto: Puxa! A cadeira se mexe sozinha! – parece pensar o rapaz. E tenta localizar um possível “motorzinho” invisível sob o tampo do objeto. Nada!

Ele puxa a cadeira para o centro da cena e tenta sentar-se. Ela sai de lado. Ele insiste, ela refuga.

Daí para a frente, o rapaz passa a achar aquilo um desaforo, e decide sentar na cadeira “quer ele queira, quer não”, restaurando assim a lógica das coisas. Só que a sua (agora) adversária não “pensa” assim e lhe oferece o máximo de resistência que pode.

E tudo se transforma numa escalada de violência: o homem trava luta selvagem de mil formas com um objeto que deveria ser inerte, chega a tentar montá-lo como a cavalo chucro, que logo derruba o improvisado peão e dá-lhe surra vexatória.

No auge do desespero, o rapaz corre atrás da rebelde, atravessando o enquadramento em alta velocidade, de cá para lá, por várias vezes, enquanto a cadeira entra em cena, lentamente, junto à câmara, pára, e fica espiando a histeria do jovem.

Ao final, ele também volta, mas capengando, à cena (do qual, é claro, a cadeira já se escafedeu). Faz um gesto de desprezo, vem até o centro, retira o livro do bolso, limpa o chão, senta-se, e começa a ler. O chão é duro, sujo e incômodo, mas…o que fazer?

É aí que a surpresa acontece. Devagarzinho a cadeira entra em quadro, deslizando, pela esquerda, ao fundo. Contorna o jovem que, absorto, na leitura, não percebe a volta da “inimiga”. Que fará ela? Dará um golpe mortal, “finalizando” o rapaz?

Pelo contrário: ela se esfrega nele, sensualmente, uma, duas vezes, como que para chamar sua atenção. De início, ele apenas a expele com o pé, para, logo depois, empurrá-la com a mão.

A reação da cadeira é imediata: ela se “debruça” e “faz manha”, como quem chora. Não sem, por um momento, dar uma “olhada” marota em direção ao rapaz, para ver que efeito seu show está causando.

Permanecendo sentado, o jovem pára de ler e chama a cadeira até ele. Ela vem toda contente, mas recebe uma bronca daquelas.  Ele agita o indicador em sua “cara” e aponta para o próprio traseiro, como que a dizer: Você não passa de uma cadeira. Foi feita apenas para servir de descanso para os meus fundilhos!

É claro que a cadeira protesta”, resiste.

Ele se levanta, indignado, e resolve ir embora. Tenta sair de cena por um lado, e a cadeira rapidamente lhe corta o passo. Ele se volta para o outro lado e ela o “puxa” pela mão até o centro da cena.

O rapaz está estupefacto. A cadeira o “cercou” e está decidida a exigir uma “resposta” dele. Mas como agradar a uma cadeira? Como compreender seus “desejos”?

Ele então começa por tratá-la como bebê: faz “bilubilu” e embala-a no colo. Põe-na chão e tenta sentar-se nela. Ela se recusa.

Trata-a como criança: joga amarelinha diante dela. Nada! Não é isso que ela quer.

Age como um militar: marcha garbosamente. Fiasco!

Dança como ela um tango passional. A cadeira nem dá bola.

Ele se desespera!

De repente, “tem uma idéia”: agacha-se lentamente, em forma de cadeira.

É isso!Mas a cadeira quer mais.

Ele entende. Tira o lenço do bolso e “se limpa todo”, como que para espanar poeira. A cadeira “vibra”, dá uma pirueta no ar e vem “sentar-se” no colo do rapaz.

Agora tudo está bem. Ele, novamente de pé, retira o livro do bolso traseiro da calça, faz uma reverência para a cadeira, esta retribui o cumprimento e espontaneamente escorrega para debaixo do rapaz, que, por sua vez, senta-se tranqüilamente e recomeça a leitura. Ao lado deles, surge um grande letreiro: …and they set happily for ever…(e sentaram felizes para sempre…)

B. Os Vizinhos

 O segundo filme é The neighbours (Os Vizinhos, 1952). Apesar de produzido cinco antes da fábula da cadeira, costumo projetá-lo depois daquele filme, porque se aprofunda mais na análise do tema da violência.

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Os Vizinhos tem cerca de dez minutos de duração, é colorido, tem som pintado e foi criado pelo processo denominado pixilation.

Consiste este recurso na síntese de quatro truques cinefotográficos tradicionais: lº) alteração da velocidade de disparo da câmara para abaixo do padrão de 24 quadros por segundo (o que produz o efeito de “saltito”); 2º) uso de câmara parada (stop motion), pela qual se filma quadro-a-quadro, causando o efeito de “animação manipulada”, seja de objetos estáticos seja de seres dinâmicos, como é o caso dos personagens do filme; 3º) corte interno de parte das tomadas, eliminando instantes dos movimentos, o que, por exemplo, faz os personagens “voarem” com os joelhos dobrados (quando, na realidade, os atores, durante a filmagem, deram saltos verticais e laterais sobre o gramado, fazendo uma espécie de ciranda); 4º) copiagem do mesmo fotograma várias vezes, o que altera a velocidade e o ritmo dos movimentos dos personagens.

A técnica do synthetic sound inventado por McLaren é um achado criativo, digno da paciência de artista chinês. Sabe-se que o som movietone, processo basicamente utilizado até hoje, inaugurou o chamado “cinema sonoro”.  De fato, o cinema jamais foi “mudo”: sempre as imagens eram acompanhadas de música, narração em voz alta, ruídos de sonoplastia, tudo “ao vivo”. No Brasil, no início do século XX, chegaram a existir filmes chamados “cantantes”, em que os atores se dublavam no momento da projeção, escondendo-se por detrás da tela!

O movietone consiste em se fazer o som transformar-se em impulsos elétricos e, desta forma, provocar a vibração da luz de uma lâmpada, devidamente colocada diante da borda de um filme virgem, para deste modo se imprimir sobre ela uma imagem contínua, sob forma de borrão irregular, parecido com uma trilha no meio do mato ou pegadas na areia do deserto. O feitio do desenho final deixado na borda do filme levou por isso os técnicos a chamá-lo de trilha, trilha sonora. O aparelho de projeção é dotado de uma célula eletrônica responsável por traduzir, decodificar, a luz em som normal, que, amplificado, possa ser ouvido nas salas de cinema.

Pois é: McLaren teve a pachorra de estudar, através de uma lupa, o formato que determinados sons deixavam sobre a trilha sonora e resolveu copiá-los, com pincel, sobre o bordo transparente de outro filme. Chegou a reproduzir música de carrossel e mil outros efeitos sonoros. Estava inventado o synthetic sound.

Se A chary tale fingia ter sido rodado em poucos disparos, pois a câmara permanece quase o neighbourstempo todo fixa, praticamente enquadrando tudo do mesmo ponto de vista, com pouca variação de planos, mantendo-se por todo o filme o mesmo cenário de fundo (mero telão negro), The neighbours, pelo contrário, sofre decupagem aparentemente normal e comum, durante todo o tempo do filme, se bem que os ações se passem num mesmo set, ou seja, num jardim defronte a  duas “casas”.

Decupar, em cinema, consiste em descrever uma ação em vários planos, fazendo a câmara mudar de posição e filmar de ângulos diferentes um mesmo objeto.

O plano é o primeiro elemento da linguagem cinematográfica e define a proporção com que a figura humana aparecerá em cena: planos abertos nos fazem ver os personagens “de longe”; planos fechados nos “aproximam” deles. Diante dos primeiros, parece que o espectador passivamente “contempla” as ações. No caso dos últimos, ocorre a sensação de participarmos dos acontecimentos da tela, por estarmos “mais próximos e íntimos” ( visualmente) dos personagens.

É em Os Vizinhos que a técnica de pixilation é levada a seu auge, usada em 100% da obra.

Assim, começa o filme com um gramado verde e vazio. Entram em quadro, de cada lado, ao fundo, duas casas (desenhadas em papelão) e duas cadeiras “preguiçosas”, que se armam sozinhas, junto à câmara. E plim! Aparecem nelas sentados dois senhores que, jornal nas mãos, acendem mutuamente seus cachimbos. Nas manchete do jornal de um se lê: Peace certain if no war (A paz é certa, se não houver guerra). E no do outro: War certain if no peace (A guerra é certa, se não houver paz).

Tudo ocorre normalmente quando, de repente, brota bem no meio do jardim, atrás dos dois vizinhos, uma florzinha amarela. Os homens se levantam, atraídos por ela. Cheiram-na. Ficam encantados, hipnotizados, drogados mesmo. Saem voando. Literalmente.

E começam a disputar a flor.

Como o jardim não tem cercas divisórias, cada um mostra, com o dedo, a linha imaginária que, passando pela flor, coloca-a ora dentro da propriedade de um, ora na de outro. O primeiro homem resolve logo “construir” uma cerca que, é óbvio, deixa a flor do seu lado do jardim. Ambos começam a disputar com gestos mágicos o posicionamento da cerca, que “muda” daqui para ali, de acordo com a preferência de cada vizinho, deixando a flor ora de um ora de outro lado da cerca.

Não chegam a conclusão alguma: a flor se encontra exatamente na linha divisória dos terrenos! Então, é preciso disputá-la “no tapa”. Um deles arranca da cerca uma das estacas e brande-a, como espada, na cara do vizinho. O outro faz o mesmo. Eles passam a duelar.

A partir daqui a violência cresce vertiginosamente. Agarram-se, espancam-se, pisam na cabeça um do outro. A florzinha, desesperada, assiste a tudo, sem nada poder fazer.

Por fim, um domina o outro, soca-o, e raspa~lhe a pele do rosto com as unhas. A cara do agressor se cobre, gesto após gesto, de pinturas de guerra cada vez mais carregadas. É claro que, durante a confusão, eles pisoteiam sistematicamente a flor, sem nem perceberem.

Uma vez surrado o adversário, cada um, por sua vez, parte para derrubar a “casa” do vizinho , atrás da qual está a mulher do outro, com seu filhinho. Criança e mãe são friamente massacradas a socos, pauladas e pontapés.

Os homens voltam a se enfrentar e terminam por ambos caírem, mortos, ao chão.

Uma fusão faz aparecer montes de terra em formato de sepultura sobre o corpo de cada um. As tábuas da cerca rodeiam as tumbas, formam cruzes sobre elas. Do ponto onde estava o objeto da disputa, surgem duas florzinhas amarelas idênticas, que “correm” pelas sepulturas e se fincam sobre cada uma delas.

Aparece um letreiro: SO (Portanto…)

E segue uma série de letreiros em caracteres e línguas as mais variadas (McLaren fizera o filme para a ONU), sendo que o último diz: LOVE YOUR NEIGHBOUR (Ama a teu próximo).

 

C. Adágio

O terceiro filme é Adágio (1972). Tem este nome porque sua trilha sonora consiste no célebre adágio de Albinoni, compositor italiano do século XVIII, que é tocado, na íntegra, por cerca de dez minutos.

Em cena, um casal de bailarinos, em collants exíguos, apresenta um pas de deux extraordinário, todo em slow motion (a erroneamente denominada “câmara lenta”, pois, para se produzir este efeito de lentidão, a velocidade de disparo da câmara não é diminuída, mas, ao contrário, aumentada).

Os protagonistas do filme, David e Anna Marie Holmes, formavam um casal na vida real e, em 1972, eram considerados os dois maiores bailarinos do Canadá.

Como McLaren fez este filme, composto, em geral em planos abertos, isto é ainda um mistério. Como conseguiu ele que o casal dançasse em slow motion, ao som de uma música tocada em ritmo normal? Esta questão aumenta o charme de mistério que envolve todo o filme, e colabora para que o espectador assista, boquiaberto, ao espetáculo que se desenrola na tela.

O filme é, literalmente, indescritível. Trata-se de um balé abstrato, sem mímica ou história. Apenas um homem e uma mulher dançam, ao ritmo solene do adágio.

Mas quatro coisas ficam claríssimas para qualquer tipo de platéia: lº) a beleza gestual e o ritmo das várias passagens do balé; 2º) a plasticidade dos corpos, cujo esplendor atlético e expressivo é sublinhado pelo slow motion; 3º) a entrega e confiança mútua entre os bailarinos, um homem e uma mulher; 4º) a paixão emanada de cada gesto do casal.

Sem dizer palavra, o filme proclama aos quatro ventos confiança, entrega, respeito, desejo, paixão, amor. Sugere o máximo de espiritualidade na relação homem/mulher, ao mesmo tempo que exibe toda uma série de entrelaçamentos entre seus corpos, o que nos remete às várias posições eróticas do Khama Sutra.

A individualidade do homem e da mulher são destacados, através de gestos ora viris, ora profundamente femininos. São dois em um. Opõem-se e se completam. Apóiam-se um no outro, fazendo do parceiro, com suave toque, ponto de equilíbrio ou de partida para mais um passo ou salto.

Arco e flecha, o corpo de um cai, sai das mãos do outro e para elas volta num vôo belíssimo. O salto no vazio encontra braços generosos, fortes, que amparam, sustentam, consolam, envolvem, acariciam.

A princípio vemos belos corpos; em seguida, devido ao slow motion, percebemos os detalhes tensos da pele, dos músculos, dos tendões. Logo após, são anjos que saltam, e, finalmente, é o ser humano, uno e múltiplo, que se libera um no outro, ocupa o espaço, afirma-se, existe. Tudo sublime. Um excelente espetáculo, eivado de amor.

Três textos

Dos três textos já relacionados de uma velha apostila de filosofia, ficamos apenas com dois, entre os quais introduzimos pequena antologia composta por três excertos de Gibran (O Profeta). O primeiro chama-se Confiança e Violência; o segundo, trechos dos discursos do Profeta sobre os filhos, sobre o ensino e sobre o amor; o terceiro: Amor como encontro original de consciências. A íntegra dos mesmos é a seguinte:

A  –  Confiança e violência

 A pessoa não pode ser pré-determinada, sem deixar de ser pessoa. (1)

Ciência alguma poderia prever, com exatidão, a felicidade ou não, por exemplo, de um casamento.

2. Se a pessoa é, pois, inesperada, se pode frustrar nossas expectativas (ou superá-las), só há um caminho para o relacionamento humano: a confiança.

Não podemos provar, cientificamente, que alguém fala a verdade, quando diz que nos ama. Falando a verdade, nem nós mesmos temos muita certeza daquilo que afirmamos, aparentemente, “com toda a certeza e segurança”.

      3. Mas acreditamos em muitas pessoas. Talvez por ser mais prático agir assim, que tentar provar, à toda hora, que os outros falam a verdade. Nossa própria mãe, nós a aceitamos como nossa mãe, apenas porque ela diz que é nossa mãe. Não se costuma colocar a questão de se fazer exame de DNA.

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4. E por que então confiamos ? (2) Por que corremos tanto risco? Porque a pessoa é ela mesma um risco ambulante, um auto-problema diário. A fé, a confiança, é alimento quotidiano do ser humano.

5. Por outro lado, acreditamos nos outros na medida em que acreditamos em nós próprios, na medida em que temos coragem de correr riscos.

A confiança, então, não teria inteligibilidade alguma: confia-se porque… se confia ?!

6. O exercício da liberdade, da libertação, é um exercício de confiança, em si e nos outros. Se a liberdade tem inteligibilidade, tem uma explicação, certamente a confiança também o terá.

7. Digamos que confiar é respeitar a pessoa naquilo que ela tem de mais seu: a consciência. Porque temos consciência de nossa capacidade, confiamos em nós mesmos. Porque e quando sabemos que as pessoas são dotadas de consciência, confiamos nas pessoas. Não cremos em coisas, mas em pessoas.

  1. 8.      E a confiança é dinâmica: não só espera e aguarda, como colabora e incentiva. Aliás, a colaboração é a faceta mais evidente da confiança.

     9.  A confiança não é, pois, uma entrega da própria vida a outrem, uma espécie de salto no escuro, pelo qual eu deixo minha existência na mão de alguém. Bem mais que isto, a confiança tem significado em si mesma, não consiste numa espécie de “delegação” da existência, mas em reconhecer e valorizar a consciência de outrem, a partir da minha própria. Confiar é reconhecer consciência no relacionamento que mantemos com as pessoas.(3)

  1. 9.      Infelizmente, porém, as relações interpessoais e intergrupais são, muitas vezes, alimentadas pelo fruto podre da desconfiança. Porque alguém falhou, pareceu errar, não atendeu às nossas expectativas, passamos a desconfiar dele, a diminuir a imagem que fazíamos da consciência dele.

11. E o mesmo acontece com relação a nós mesmos: “o ladrão pensa que todos são da sua condição”. Adotamos, em conseqüência, um lema para nossa vida: “confiar, desconfiando”.

Não nos apercebemos do absurdo deste tipo de raciocínio: confiar, desconfiando, jamais será confiar. Passamos então ao pólo oposto da confiança; a violência.

  1. 12.  E há muitas formas de violência: preconceito, agressão oral e física, indiferença, omissão.
  2. 13.  Vemos hoje a violência manchar os atos humanos mais legítimos e livres. O governo dos povos depende da chantagem e fica à mercê do terrorismo. O casamento, ato de amor e confiança, é cena freqüente de desentendimentos, cuja solução é buscada na violência da dominação de um cônjuge sobre o outro, ou mesmo na disputa de poder entre eles.
  3. 14.   Há variados graus de violência, entre os quais a agressão física – tão chocante para quem se diz civilizado – não é o pior nem, muitas vezes, a causa inicial de conflitos incontroláveis.
  4. 15.   O machismo e, em revanche, o feminismo exacerbado, escondem uma hipocrisia que violenta os sexos. A propaganda comercial, que nos promete sempre mais e mais felicidade, quando, na verdade, nada mais quer que nosso dinheiro, é talvez mais violenta (porque mais frustrante) que os filmes policiais  enlatados de TV que ela patrocina.
  5. 16.   A concorrência como lei maior da vida pode estar na raiz de atos violentos, pois já é, de si, violenta: ou eu ou o outro!
  6. 17.   E finalmente a violência em seu grau mais refinado: a omissão. (4)Uma violência inodora e incolor, que mal perturba a consciência dos que estão acostumados a ela. Já dizia Caim: “Acaso sou guarda de meu irmão?”

A omissão é a grande causadora de todas as violências. Porque deixamos de confiar, porque não criamos um espaço alternativo à nossa volta, é que existe tanta miséria, fome, ódio, guerra. E pensamos que ser livre é não se comprometer com coisa alguma nem com ninguém!

18. Não há uma terceira opção para o relacionamento humano: ou a confiança que liberta ou a violência que esmaga. (5) E a violência surge do medo, um medo que nos faz sublinhar o aspecto de risco, de insegurança da existência, enquanto a confiança nasce da certeza que brota do uso correto de nossa consciência.

Somos rapidamente empolgáveis pela violência, porque com facilidade o medo se apossa de nós. O medo do diferente, o medo do outro. A violência parece mais simples e eficaz. A confiança parece desgastante e ingênua.

19. Ora, a violência nasce da violência e só produz violência. A confiança, por sua vez, faz crescer a confiança. E só confia quem é livre, quem é livre do medo do outro. Só confia nos outros quem acostumou a respeitar-se, respeitar e, portanto, atrair respeito.

20. Criar um ambiente de confiança, no entanto, é uma tarefa comum, não solitária.(6)

(As frases estão destacadas em negrito deverão servir de tema de debate).

 

B – O profeta – Gilbran Kalil Gibran

 E uma mulher que carregava seu filho nos braços disse: “Fala-nos dos  filhos”.

E ele disse:

“Vossos filhos não são vossos filhos.

São os filhos e as filhas da ânsia da Vida por si mesma.

Eles vêm através de vós mas não de vós.

E embora vivam convosco, não vos pertencem.

Podeis outorgar-lhes vosso amor, mas não vossos pensamentos.

Porque eles têm seus próprios pensamentos.

Podereis abrigar seus corpos, mas não suas almas;

pois suas almas moram na mansão do amanhã, que vós não podeis visitar nem mesmo em sonho.

Podeis esforçar-vos por ser como eles, mas não procureis fazê-los como vós;

porque a vida não anda para trás e não se demora com os dias passados.

Vós sois os arcos dos quais vossos filhos são arremessados como flechas vivas.

O Arqueiro mira o alvo na senda do infinito e vos estica com toda a sua força, para que suas flechas se projetem, rápidas, para longe.

Que vosso encurvamento na mão do Arqueiro seja a vossa alegria:

Pois assim como Ele ama a flecha que voa, também ama o arco que permanece estável.”

Então, um professor disse: “Fala-nos do ensino.”

E ele disse:

“Nenhum homem poderá revelar-vos nada senão o que já está meio adormecido na aurora do vosso entendimento.

O mestre que caminha à sombra do templo, rodeado de discípulos, não dá de sua sabedoria, mas sim de sua fé e de sua ternura.

Se ele for verdadeiramente sábio, não vos convidará a entrar na mansão de seu saber, mas antes vos conduzirá ao limiar de vossa própria mente.

O astrônomo poderá falar-vos de sua compreensão do espaço, mas não vos poderá dar sua compreensão.

O músico poderá cantar para o vós o ritmo que existe em todo o universo, mas não vos poderá dar o ouvido que capta a melodia, nem a voz que a repete.

E o versado na ciência dos números poderá falar-vos do mundo dos pesos e das medidas, mas não vos poderá levar até lá.

Por que a visão de um homem não empresta suas asas a outro homem.

E assim como qualquer de vós se mantém só no conhecimento de Deus, assim cada um de vós deve ter sua própria compreensão de Deus e sua própria interpretação das coisas da terra.”

Então Almitra disse: “Fala-nos do amor.”

E ele ergueu a fronte e olhou a multidão; e um silêncio caiu sobre eles, e com uma voz forte, dirigiu-se a eles, dizendo:love-peace

“Quando o amor vos chamar, segui-o,

embora seus caminhos sejam, agrestes e escarpados:

e quando ele vos envolver cm suas asas, cedei-lhe,

embora a espada oculta na sua plumagem possa ferir-vos;

e quando ele vos falar, acreditai nele,

embora sua voz possa despedaçar vossos sonhos como o vento devasta o jardim.

Pois da mesma forma por que o amor vos coroa, assim ele vos crucifica. E da mesma forma por que ele contribui para vosso crescimento, ele trabalha para vossa poda.

E da mesma forma por que ele sobe à vossa altura e acaricia vossos ramos mais tenros que se embalam ao sol,

assim também ele desce até vossas raízes e as sacode no seu apego à terra.

Como feixes de trigo, ele vos aperta junto ao seu coração.

Ele vos debulha para expor a vossa nudez.

Ele vos peneira para libertar-vos das palhas.

Ele vos amassa até que vos torneis maleáveis.

Então ele vos leva ao fogo sagrado e vos transforma no pão místico do banquete divino.

Todas estas coisas o amor operará em vós, para que conheçais os segredos de vossos corações e, como esse conhecimento, vos convertais no pão místico do banquete divino.

Todavia, se no vosso temor procurardes somente a paz e o gozo do amor,

Então seria melhor para vós que cobrísseis vossa nudez e abandonásseis a eira do amor,

para entrar no mundo sem estações, onde rireis, mas não todos os vossos risos, e chorareis, mas não todas as vossas lágrimas.

O amor nada dá, senão de si próprio, e nada recebe, senão de si próprio.

O amor não possui nem deixa possuir.

Pois ele basta-se a si mesmo.

 C. O amor como encontro original de consciências

 1. Originalidade: (cada pessoa é original: ninguém pode existir “em vez, no lugar dela”).

O amor é uma relação viva de um “eu“ com um “tu”, ambos seres únicos, insubstituíveis, intransferíveis e, portanto, originais, que, aceitando-se distintos e diferentes, tornam-se iguais, ao correrem, juntos, o risco de existir. Só há igualdade no amor, só há amor na igualdade. Onde há disputa de poder não há amor, porque o poder consiste em querer reduzir o outro a seu domínio, à sua expectativa. No amor, no entanto, há plena liberdade de existir. Ao amar, abdicamos do controle sobre o outro, porque nos propomos a, com ele, percorrer um caminho comum.balletadagio

Riscos: Conceber existencialmente o amor como uma relação, entre um “tu” e um “eu” destituídos de originalidade.

Pensar (e viver) o amor como “dádiva” ou “recebimento, isto é, como bem econômico, simples objeto de troca. Isto produz a coisificação do amor: a gente, ao invés de amar a pessoa, “gosta” das coisas da pessoa.

Reduzir o amor a uma prática de ”coisas” (gestos, palavras) e não vivê-lo como relação especialmente significativa e significante: única, insubstituível, intransferível, original. Ao invés de amar, a gente só se apaixona.

2. Comunicação: (ninguém existe sozinho: somos relações vivas com o outro).

Amar é achar significado original e único numa relação entre pessoas. Da exclusividade do eu (“eu não sou tu”), passa-se à exclusividade da relação eu-tu : eu te amar, tu me amares, não é eu amar outra pessoa (distinta de ti) ou tu amares outra pessoa (distinta de mim).

Assim, o amor primordial é o amor conjugal, donde provêm todos os outros modos de amar (amor paternal, maternal, filial, fraternal).

Riscos: Conceber existencialmente o amor como relação provisória, descartável, passageira, substituível. No momento em que tu podes ser substituído como motivo (sujeito, e não objeto) de meu amor, também eu posso ser substituído como motivo do teu. As pessoas seriam trocáveis, substituíveis, como objetos usados e em desuso, desgastados.

Pode haver um esvaziamento da palavra e uma coisificação da relação (rotina e burocratização do amor). Minha palavra de amor (original) pode, pelo desgaste da repetição, cair no cansaço, na desconfiança, no temor. A relação de amor deixa de ser mistério para tornar-se um simples enigma. Deixa de ser autêntica, de ser a expressão de uma consciência original. Quando a relação do amor perde a autenticidade para um dos dois, cessa de ser autêntica para ambos.

2, Presença : (ser presente é manter-se em relação atual com alguém).

O amor é presença significante, significativa e significadora entre duas pessoas. Amar não é apenas “estar diante de“. Amar é ser para o outro, é descobrir (mutuamente) no outro, um motivo, uma atração, um valor, à volta do qual a vida se estrutura e faz sentido. Amar é estar presente, isto é, atuar aqui e agora, sobre si mesmo e sobre e com o outro. Achar um objetivo comum, aqui e agora, para nós. (“E os dois serão uma só carne, correrão o mesmo risco juntos…”)

Riscos: Querer criar um significado solitário para o amor. Tentar reduzir a relação presente (e, pois, comunicante) a uma relação de posse do outro. Não há amor, quando se está presente a coisas, mantendo relação com elas. Só há amor quando se está presente a pessoas, quando se compartilha um significado comum de estar aqui e agora, presentes um na vida do outro.

Esgotar a presença eu-tu num círculo fechado ao mundo e às outras pessoas. Por essa atitude, o amor seria uma saída, uma fuga do mundo, que ficaria “entre parênteses” ou “para trás” ou “lá fora”, enquanto se ama. (Ver o filme “Blade Runner”). Porque o amor estaria sempre ameaçado pelo “mundo” (as coisas e as outras pessoas), que tirariam sua “privacidade”, sua “interioridade”. Pensa-se que o amor é cego, que ele não seria capaz de perceber, enquanto relação exclusiva entre duas pessoas, as demais realidades nas quais estarão sempre imersas estas mesmas pessoas.

 

4. Historicidade: (tudo passa, escorre, nada se repete. Somos, sendo, indo.)

O amor, como relação de originalidades conscientes, é também um processo vivo, pulsante. Assim como não sou para sempre, mas preciso, a cada passo, renovar o significado de minha presença, também na relação exclusiva do amor é preciso caminhar, zelar, construir, reconstruir, recomeçar sempre.

Amor que, como relação viva, não se renova, fenece.  A fidelidade não consiste na manutenção de hábitos, mas na renovação contínua do amor. É preciso tratar o amor como se trata água fresca e corrente: fazer de tudo para impedir que ela fique estagnada. E amar é recomeçar sempre, pelo perdão.

Riscos: Querer ter amor para sempre. Fixar a passagem. Transcendentalizar a imanência. Tentar parar o rio. Fixar (mumificar) a vida.

Pensar que “uma vez amado, amado para sempre”. Colocar determinismos no amor, leis, obrigatoriedades no amor. O amor é exigente, mas não pode ser obrigatório nem obrigador.

5. Mistério: (misterioso é o inesgotável; enigma é mero quebra-cabeças).

Amor, como relação viva entre consciências originais, não se esgota, não tem limite, não tem padrão, não tem última palavra.

Amar é auto-superar-se e fazer o outro se superar. É não achar limites na própria relação de amar. O amor começa com a misericórdia, começa com a aceitação da finitude, e caminha adiante, partindo para a aceitação do desafio do ilimitado, do misterioso.

Riscos: Conceber o amor como um enigma. Uma vez desvendados os segredos do outro, uma vez rotinizada a relação como o outro, tudo deixa de ser um desafio de crescimento, perde a novidade e morre.

Ter medo do mistério do amor, de sua vertigem, de sua gratuidade.

6. Libertação: (libertar-se é desejar sempre mais, ilimitadamente).

Só me liberto no outro, só me liberto no amor, na gratuidade do estar junto, na troca de originalidades, na troca de significados da vida (em) comum, na com+vivência, no correr o risco juntos. Ao assumir plenamente a imanência (passar) e a transcendência (permanecer) da vida junto com outro ser, também ele insubstituível e original, nós nos libertamos, porque nos ultrapassamos.

Riscos:  Conceber existencialmente a libertação como “fazer o que me dá na telha” ou como algo que é sacrificado e perdido, quando “faço o que o outro quer e não o que eu queria”.

Pensar que, para ser amado, é necessário “fazer sempre os gostos de si mesmo ou do outro”. Muitas vezes a libertação assim concebida nada mais é que um impulso neurótico e, pois, alienante, e não libertador. (Liberdade não é fazer o que se quer, mas poder dar significado ao que se faz).

Conceber o outro como um limite à minha liberdade. Amar, desta forma, seria fazer concessões, sacrifícios mútuos. O amor não seria assim libertador, mas aprisionador. No fundo, no fundo, uma armadilha : “ruim sem ele, pior sem ele”.

7. Deus é amor.

 

***

Análise estrutural do filme “Desmundo”

Direção de Alain Fresnot – BRA (2003)
(Roteiro premiado pelo SUNDANCE)

SINOPSE: A trama se concentra na corajosa Oribela (Simone Spoladore), uma das várias órfãs enviadas por Portugal àsdesmundo novas terras por El Rey, a pedido do Pe. Manuel da Nóbrega, em 1570 – uma maneira de os colonos estabelecerem família e de a Igreja impedir que relações sexuais com índias e negras corrompam as linhagens portuguesas. Oribela, no entanto, se opõe. Quer apenas voltar para casa. Como castigo por sua insurgência, termina casada com o rude Francisco de Albuquerque (Osmar Prado). Em meio a uma rotina de abusos, incestos, brigas e tentativas de fuga, ela se desespera. Residem no comerciante Ximeno (Caco Ciocler), um  cristão-novo, as últimas esperanças de liberdade da garota. O romance original de Ana Miranda, no qual se inspira o filme, é escrito num pseudo-português arcaico.

Introdução: A chegada

  1. Chegada da caravela.
  2. Descem uma vaca.
  3. Mulher e seis moças descem de barco até a praia.
  4. Frei entrega grupo a jesuíta.
  5. Órfãs são instaladas.
  6. Meninas tomam banho…vestidas.
  7. Chega mulher do Governador para examiná-las.
  8. Velha pede a ela um marido devoto para Oribela, que veio de um convento. Mulher ri. Explica para as moças que “o casar é leve”.
  9. À noite, Oribela, desesperada, reza em latim.
  10. Velha passa saliva nos joelhos machucados de Oribela. Esta quer voltar para o convento, em Portugal.

Parte 1:  A apresentação das meninas

  1. Moças sentadas (PAN).
  2. Chega Governador.
  3. Oribela percebe Ximeno, o cristão-novo,judeu, que fala com índios.
  4. Há discussão sobre o que fazer com os índios.
  5. Governador chama pelas órfãs.
  6. Os pares são compostos.
  7. Oribela é chamada para receber presente de D.Afonso (Cacá Rosset).
  8. Ela cospe-lhe na cara.
  9. Mulher dá “bolos” nas mãos de Oribela, que não reclama. No fim sopra-as, para diminuir a dor.

Parte 2: O casamento coletivo

  1. Desfile, com trombone, viola e tambor.
  2. Jesuíta faz sermão, explicando o acontecimento, que visa preservar a família portuguesa.
  3. Cada moça dá a mão a seu noivo.
  4. Padre recomenda o casamento cristão, para evitar o pecado da miscigenação e do incesto.
  5. Coral de indiozinhos canta Agnus Dei em latim.

Parte 3: Oribela e o marido, Fº de Albuquerque (Osmar Prado)

  1. Os dois entram em casa. Ela pergunta o nome dele.still_desmundo1
  2. Ele tenta agarrá-la. Ela reage. Reza. Pede que tenha paciência. Fº promete que vai ter, e solta-a.

Parte 4: Partem para a casa de Fº no mato

  1. Viajam pela mata.
  2. Fº apresenta a mãe a Oribela.
  3. Oribela revista a casa e se encontra com uma índia (a portuguesa não entende o que índia fala).
  4. Entrevista-se com a mãe, que fala bem de Fº.
  5. Ele a faz montar num cavalo e lhe diz que a recebeu, mas ela foi considerada pelos outros como um restolho. Ela diz: “Eu não sou um restolho.”
  6. Fº, sentado na rede, tira as botas.
  7. Ele vai até Oribela, agarra-a e a bolina. Ela fica impávida, mas arranha o braço do homem. Fº desiste pela segunda vez.

Parte 5: O judeu, o ciúme e a fuga

  1. Chega Ximeno, o comerciante cristão-novo, com índios capturados. Fº o recebe bem.
  2. índia cata piolho num menino down.
  3. Judeu e Fº jogam gamão.
  4. Fº chama Oribela e diz para ela escolher um dos produtos que Ximeno vende. Ela escolhe uma tesourinha de unha, que está bem ao lado do judeu. Suas mãos quase se tocam.
  5. Judeu vai embora com sua tropa.
  6. Fº espanca Oribela, por ciúme. Depois, a possui. Ela não demonstra prazer algum.
  7. À noite, ela foge de casa.

Parte 6: Na praia

  1. Três homens encontram Oribela e tentam estuprá-la.
  2. De repente, chega Fº com dois índios e a salva, matando os três.

     43.  Fº amarra as mãos de Oribela e a obriga a seguir a pé seu cavalo de volta para casa.

Parte 7: Prisioneira

44.  Já em casa, Oribela fica acorrentada pelos pés.
45.  Através de um buraco na parede, ela vê o menino down.
46.  Sentada numa esteira, ela canta.
47.  Índia lhe faz curativo nos pés.
48.  À noite, ela percebe que uma tropa passa por perto da casa. E se desespera.

Parte 8: Fº a liberta

Francisco
Francisco
  1. Fº lhe dá a chave do cadeado da corrente, para ela soltar os pés.
  2. Manda que tire suas botas.
  3. Ela é obrigada a mostrar-lhe o sexo.
  4. Fº deita-se sobre ela, possuindo-a e a ameaçando de morte, caso tente nova fuga.

Parte 9: Vida doméstica

  1. Fº lhe dá uma arca e um espelho.
  2. Oribela, roupas limpas, sentada, espreme um grande escaravelho contra o chão, com uma varinha.

Parte 10: O padre e a velha passam pela casa de Fº

  1. Velha que trouxera Oribela de Portugal chega com jesuíta na casa de Fº
  2. Oribela se arruma. Descobre dinheiro de Fº  caído no chão e o esconde.
  3. Jesuíta quer meninos para a catequese.
  4. Sentam-se à mesa.
  5. Oribela vai falar com a velha: ela quer voltar para Portugal.

Parte 11: A briga

60 No dia seguinte, ao partir, jesuíta disputa índios com Fº. Brigam. Jesuíta vai continuar viagem com  sua gente. Mas antes ameaça Fº com a lei, porque ele escraviza os índios.
61  Mãe repreende Fº. Ele diz que, se for preciso, foge mais fundo para  sertão.
62  Mãe: “Tu te tornaste selvagem!”
63  Fº promete presentes a Oribela.
64  Fº a apalpa, e deita-se sobre ela. Ele se confessa muito rude. Ela acaricia os cabelos dele.
65. Oribela ajuda a mãe de Fº na cozinha. O menino down está presente. Ela sorri para ele.
66. Ao conversar com a velha, ela compreende que o menino é filho de Fº com sua própria mãe.

Parte 12: Oribela na aldeia

67    Oribela, vestida de homem, foge de casa montada numa mula.

Oribela e Ximeno
Oribela e Ximeno

68    Encontra-se com Ximeno.
69    Apresenta-se como Antônio, e diz que quer viajar. Oferece-lhe dinheiro. Ele não aceita, pois a reconhece logo.
70    Ela volta à casa de Ximeno, e pede abrigo ao judeu, até a nau chegar.

71    Fº chega ali naquele momento e quer falar com Ximeno.
72    Fº diz que está à procura do “ladrão” de seu jegue.
73    Logo que Fº vai embora, Ximeno esconde Oribela na torre de sua casa. Ordena que ela fique quieta. Que não mexa em nada.
74    De madrugada, Oribela espia através das ameias da torre a aldeia ainda adormecida.
75    Ximeno traz comida para Oribela.
76    Fº espera na aldeia.
77    Oribela conversa alegremente com Ximeno.

Parte 13: Fº e o jesuíta

78    O jesuíta repreende Fº mais uma vez. Mas este pede para falar com a Velha que trouxe Oribela de Portugal (D.Maria).
79    O jesuíta diz que a mulher está fazendo penitência, não pode atendê-lo. Fº diz que sua mulher fugiu de novo.

Parte 14: Ximeno e Oribela

80    Eles transam na torre da casa.
81    Ximeno pede a um amigo informações sobre uma viagem que pretende fazer.
82    Ele resolve fugir com Oribela para o sul, pois não pode escondê-la por mais tempo. Irão para uma cidade castelhana, no sul, que é mais segura.
83    Ela pergunta se ele a seguiria até o Reino. Ele diz que não, mas a abraça. Ele teme ser enforcado, se for a Portugal.

Parte 15: Fuga de madrugada

84    Os dois fogem à cavalo na direção da cidade dos castelhanos.
85    Galopam pela praia, já sol a pino. É quando chega Fº, que os ameaça com um mosquete. Mas diz que não quer matá-los. Apenas levar Oribela consigo. Ela manda que ele vá embora e a deixe em paz. Ximeno e Fº, depois de muitas ameaças. terminam por atirar um no outro.

Parte 16: Nasce filho de Oribela

86    Oribela grita de dor.  Está parindo.
87    Fº vai internar-se mais ainda no mato com todas as suas gentes e coisas.
88    Oribela é transportada numa rede. Índia lhe entrega o bebê. Partem.

FIM

ADAPTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA

 Um estudo sobre o filme DESMUNDO, de Alain Fresnot, BRASIL, 2003.

1. Proposta: analisar não o filme, mas a adaptação de linguagem nele, ou seja, a passagem de uma narrativa de origem literária para o cinema; fazer um estudo de caso de adaptação da arte literária para a arte cinematográfica.

 2. Primeira consideração: no processo comunicacional literário predomina o espaço sobre o tempo. No cinema, dá-se o inverso. Por isso, quem determina o tempo de recepção, na literatura, é o receptor (leitor), enquanto que no cinema, quem determina este tempo é o emissor (diretor e sua equipe).

3. Segunda consideração: o escritor escreve para o indivíduo ler.  O cineasta filma para a multidão ver (e ouvir).

4. Terceira consideração: a literatura é abstrata, por ser baseada em conceitos. O cinema é concreto, por ser narrado através de imagens do movimento.

5. Assim sendo, o escritor pode inverter a ordem “histórica” da narrativa (a ordem da sucessão dos “fatos” como eles se “deram”), narrar em vários níveis diegéticos (como o fazem muitos romancistas) ou fazer subir à tona do texto este ou aquele elemento dramático ou personagem. O texto permite esta liberdade de construção, pois, uma vez respeitada a clareza gramatical, todos as figuras de estilos são compreensíveis, para um leitor mais acostumado ou atento. Além disso, o leitor pode volta e reler o texto quantas vezes quiser, para saboreá-lo mais ou para entendê-lo melhor.

 6. Isto já não ocorre com a adaptação cinematográfica. Para praticar uma arte que está a serviço de um público múltiplo, que a presencia simultaneamente, e é antes de mais nada, temporal, o cineasta (o caso de Desmundo não é exceção)  tem de selecionar suas imagens, para que elas sejam instantaneamente compreensíveis por este grande público. Se demorar demais, o filme perde o ritmo narrativo. Se for rápido demais, o espectador médio não acompanha, não entende, e desiste de acompanhar o filme. Por outro lado, ao escolher esta e aquela imagem, o cineasta define praticamente quase tudo o que deveria ser imaginado pelo espectador, diferente do escritor, que deixa ao leitor a tarefa da imaginação, seja do rosto dos personagens, seja do ambiente no qual ele se insere.

 

7. Assim, Alain Fresnot, diretor de Desmundo, não pode fazer na tela o que Ana Miranda faz em seu livro: descrever um processo íntimo do personagem, a partir do impacto que cada situação causa sobre ela, criando seu próprio contexto espácio-temporal, misturando, num só discurso, sonho, lenda e realidade. Fatos e interpretação subjetiva dos fatos.

8. Bem ao contrário: Fresnot decidiu escolher pontos visualizáveis do texto que lhe pareceram essenciais para dar unidade à construção de sua narrativa, para que ela seja coerente e accessível ao espectador. Ele centra seu assunto principal na chegada ao Brasil de jovens órfãs provenientes de Portugal – dentre elas a protagonista Oribela – para se casarem com colonos (de fato, degredados), a fim de que – como dizia o Padre Manuel da Nóbrega, inventor da idéia – “os homens desta terra vivam em serviço do Nosso Senhor”.


9. Resumo da narrativa fílmica: Após enfrentar uma viagem terrível que lhe mói a alma e os ossos, Oribela chega a um
Desmundo 04 país em que tudo lhe é estranho e novo. É obrigada contra a vontade – ela chega a cuspir na cara de um pretendente – a unir-se a Francisco de Albuquerque, dono de uma fazenda fora do povoado. Homem rude e duro, modelo oposto ao que dele esperava a mística e romântica Oribela, cuja atenção fora de início atraída por um mancebo bem apessoado, entre tanto povo decadente: o judeu Ximeno.

O esposo Francisco, na noite de núpcias, num primeiro momento lhe concede algum tempo “para aprender a amá-lo”, mas dias depois ele praticamente a estupra.

Oribela pensa em voltar a Portugal e foge da fazenda, num momento de descuido do marido. Mas na praia sofre tentativa de violação, por parte de três estranhos. No último momento, contudo, é salva por Francisco, que a procurava com insistência. Ele, depois de matar a tiros os bandidos, trata a mulher brutalmente, chegando a trazê-la amarrada para casa.

Acalmados os ânimos, Francisco recebe tempos depois a visita de Ximeno, comerciante de toda sorte de mercadoria, e do qual tem muito ciúme, o que o leva a espancar Oribela.

Um ataque dos índios à fazenda de Francisco dá oportunidade a Oribela de tentar nova fuga, agora vestida em roupas masculinas, cabelos tosados. E a moça se vai esconder justo na casa de Ximeno. Aos poucos surge entre eles carinho e amor. E Ximeno resolve levar Oribela para longe dali, fora do alcance de Francisco. Este, no entanto, consegue localizar os dois, em plena fuga. Um rápido duelo junto ao mar termina em tiros.

Oribela aparece novamente na fazenda de Francisco, onde mais tarde dá à luz um menino. Ela é carregada numa rede, criança ao colo, partindo em viagem com o marido e a sogra. FIM.

10. Dois rápidos enredos paralelos aparecem no filme: a história vivida pela figura da Velha, que acompanhou a viagem das meninas, antiga freira que fora expulsa do convento, porque tivera um filho. E a tensão violenta entre o caçador de bugres Francisco de Albuquerque e um padre jesuíta catequizador de índios (sem nome no filme).

11.  Assim, Fresnot opta por abandonar completamente a proposta que caracteriza o estilo literário de Ana Miranda: a narrativa subjetiva em português arrevesado da heroína, única perspectiva que nos é oferecida pelo livro.

           Lemos o texto como se estivéssemos diante de uma espécie de diário íntimo de Oribela.

      Fresnot, pelo contrário, narra o filme em terceira pessoa, raramente posicionando a câmara do ponto de vista da personagem principal, talvez para retratar melhor a “coisificação” a que ela é submetida.

12.  Além disso, todo o discurso de Oribela, no livro, é eivado de listas de coisas, personagens e procedimentos. Quer com isto a escritora mostrar como tudo era novidade para a órfã, tudo motivo de admiração e descoberta. Além disso, tal listagem caracteriza bem a feminilidade da narradora, acostumada a perceber pormenores aparentemente os mais insignificantes, com precisão e delineamento completo. Mais ainda: os próprios nomes das coisas caracterizam sua época e suas condições de produção.

         Oribela não está preocupada em contar uma história, mas apenas em fazer uma espécie de inventário de sua experiência íntima. Este intimismo feminino, contudo, o cineasta não acompanha nem registra em seu filme, preferindo insistir no desvalor com que a mulher é tratada.

13.  Fresnot deposita a compreensão de todo estupor, angústia e sofrimento de Oribela sobre o rosto da atriz e nos gestos agressivos de seu marido. As imagens do filme são realistas, o texto do livro vai além do real, para localizar-se bem dentro da intimidade da heroína.

        Assim, o texto é muito mais violento e soturno que o filme. Porque mais sugestivo. A força do filme está na história, espécie de triângulo amoroso em meio a um século XVI, em que a mulher mal passava de objeto masculino. A força do texto está no próprio testemunho secreto de Oribela, que tem plena consciência de que “mulher é um saco de fazer filhos”.

14. Assim, a montagem é seqüencial, cronológica, o que torna o filme perfeitamente compreensível para o público médio. Nenhuma inversão, nenhum momento de sonho ou surrealismo. O uso de planos é normal, sem exageros estilísticos, pois a narrativa é realista. Ou seja, entre a clareza diegética e a criação de um clima intimista e às vezes surreal (como ocorre no texto), Fresnot fica com a primeira opção. Porque é cineasta e entende do riscado, baseia seu filme na beleza e exotismo das imagens e no diálogo pseudoquinhentista que o texto de poucas falas e muita reflexão pessoal lhe oferece. Assim, a direção de arte é primorosa. Se não pretende uma reconstituição histórica fiel, já que as fontes de época nos são precárias, busca, no entanto, – e consegue – passar um clima de autenticidade, que convence o espectador não especializado em estudos históricos.

15. Uma última consideração. É verdade que a televisão brasileira nas últimas décadas do século XX permitiu às pessoas se verem em personagens que falam nossa língua e têm hábitos semelhante aos nossos, facilitando este processo de transferência e identificação também junto ao público do cinema. Ela se tornou verdadeiro sucesso mundial de comunicação com audiências múltiplas e heterogêneas. No entanto, seu desdobramento e influência sobre o cinema brasileiro vem pasteurizando a narrativa cinematográfica, em nome da popularidade.

16. Alguns dizem que isto é sinal da maioridade de nosso cinema. A arte da tela grande seria caríssima, e não poderia ficar à mercê da experiência pessoal de criadores que não tenham compromisso com bilheteria e lucro. Por outro lado, reduzir a arte ao sucesso comercial é o mesmo que reduzir bens culturais às suas perspectivas puramente econômicas, o que periga levar esta arte à auto-destruição. 

17. Resumo da ópera. Atualmente, é preferível existirem filmes brasileiros como Desmundo, apesar de sua proposta reducionista, em relação ao texto literário donde tem origem e onde se inspira. Porque ele se presta a transmitir a nós e ao mundo temas nossos, problemática e cenas brasileiras, mesmo que do século XVI. Mais que nunca é preciso repetir com Paulo Emílio Sales Gomes: “todo filme brasileiro é bom.”

Cinema e Arquitetura

por Paulo Antônio Pereira

Cinema e Arquitetura compartilham muitos aspectos criativos e expressivos e divergem em outros.
Na presente análise, vamos insistir mais nas semelhanças que nas diferenças.

Destaque-se, inicialmente, que Cinema e Arquitetura são, a um só tempo, tecnologia e arte. Como tecnologia, são ciência aplicada. Quer dizer, pressupõem um conhecimento científico de vários níveis e origens, que tornam aquelas atividades bem mais que gestos empíricos, frutos de uma espontaneidade sem poder crítico, sem alternativas, apenas repetidor do que foi passado pela tradição.

Ao contrário, exatamente porque se baseiam em ciência, Cinema e Arquitetura possuem o dom de inserir-se conscientemente, seja no âmbito social, seja no processo histórico, num gesto criativo que os pode elevar, numa segunda instância, ao nível da arte.

Oscar Niemeyer
Oscar Niemeyer

Claro: é comum vermos construções “sem sal e personalidade”, apesar de sólidas e tecnicamente corretas. É óbvio que as telas dos cinemas também estão cheias de imagens medíocres e vazias, mas isto não apaga o destino maior de ambos – Cinema e Arquitetura – de produzir obras que não se restrinjam a, respectivamente, “fazer passar o tempo e abrigar os corpos.”

Muito mais que isto: assim como o objetivo maior da Arquitetura é criar um espaço humanizado, em que predomine a liberdade através da beleza, assim também sempre foi desejo maior do cinema manipular um espaço comunicacional, na tela, através da estética da imagem do movimento.

Cinema e Arquitetura são. pois, artes; artes do espaço, antes de tudo. Mas se o Cinema se exprime através da imagem do movimento, a Arquitetura, por seu lado, se concretiza lançando mão da realidade sólida dos materiais. É possível que o aspecto de pura virtualidade da imagem possa ter alguma coisa com a solidez concreta da arquitetura? Tem, se tratarmos os conceitos de ambas as artes analogicamente.

E a primeira característica espacial da imagem do cinema é ter um enquadramento, ou seja, uma forma de se “exibir alguma coisa”. Ao enquadrar, o cineasta pretende selecionar uma porção do espaço, para mostrá-lo ao espectador e fazer este último estabelecer uma relação participativa, dramática e comunicativa com aquilo que aparece na tela. O enquadramento parece dizer ao espectador: “olhe para isto!” Se dentro do enquadramento as dimensões do ambiente prevalecerem sobre a da figura humana, a tendência do espectador é adotar uma atitude de contemplação. Se, pelo contrário, a figura humana predominar na tela e até mesmo a extravasar (como no caso do uso do primeiro plano ou close up, pelo qual se vê, por exemplo, apenas o rosto superdimensionado de uma pessoa ocupando todo o enquadramento), o papel do espectador será mais participativo, devido à intimidade provocada por tal situação visual.

A segunda característica da arte comunicacional do cinema é a composição. Compor é estabelecer, dentro do enquadramento, relações entre linhas, luzes, cores, “massas” (no sentido plástico do termo), perspectiva (que sugerem terceira dimensão, visto que esta inexiste na realidade da tela, essencialmente bidimensional).

Big City Blues (1962)
Big City Blues (1962)

A terceira característica da imagem cinematográfica é o movimento imaginal. Sabe-se que o cinema foi a primeira tecnologia/arte a representar o movimento das coisas e pessoas, através de um registro fotográfico serialiazado. Este movimento é puramente imaginal, pois consiste – sabe-se há muito – numa ilusão de ótica bem complexa, cujo início se dá no fundo do olho humano, pela persistência retiniana, e termina pela ocorrência do denominado efeito phi, em âmbito cortical.

Esta pseudo-reprodução do movimento evidencia com clareza a origem artística do cinema, como gratuidade de expressão. De fato, o movimento e o tempo cinematográficos são realidades criadas pela mão humana. Prova disto são os movimentos impossíveis, na realidade, que o cinema nos mostra com a maior simplicidade. Exemplo óbvio, entre vários, são os efeitos de “inversão do tempo”: um aqualouco que salta, desengonçado, de altíssimo trampolim, mergulhando numa piscina, para logo em seguida voltar, impávido, ao ponto donde saltara, com a água também retornando calmamente a seu lugar. Outro exemplo é o uso freqüente do que se chama “efeito de câmara parada”: Lá está, Jeannie, o gênio; num “plim”, ela desaparece diante de nossos olhos, por um movimento impossível de ser realizado na vida real, sem o recurso à manipulação da imagem.

Mas o movimento essencial do cinema é a montagem. Por ela, várias imagens do movimento são coladas, sem sequência, uma após outra.

Mais que movimento, a montagem é mudança ideológica. É fácil entender. A imagem de um homem sentado no chão, encostado a uma parede, cabeça reclinada, não nos diz exatamente o que está acontecendo com ele: estará descansando, após manhã rotineira de trabalho? Estará passando mal? Não duvidaremos, contudo, do sentido daquilo que o cineasta nos quer mostrar, se a imagem do homem for imediatamente seguida pelo enquadramento de uma garrafa vazia, deitada no chão, junto ao pé do ator. Separadamente, homem reclinado e garrafa nada significam. “Montados”, adquirem um sentido novo: trata-se da imagem de uma bebedeira.

Enquadramento, composição, movimento imaginal, montagem. O que estes elementos básicos da linguagem cinematografia têm a ver com a Arquitetura? Primeiro, quanto ao enquadramento. Há uma profunda analogia entre o ato de escolher um espaço para mostrar ao espectador e o ato de escolher um espaço a ser ocupado por uma obra arquitetônica.

Isto porque à Arquitetura não basta trabalhar com o espaço. Ela precisa manipulá-lo (“tirar partido” dele), de modo a produzir também um efeito visual. É o aspecto artístico da Arquitetura, que não se contenta com o que faz, mas cuida especialmente do modo como a coisa que é feita se apresenta no espaço. É essencial à obra arquitetônica seu aspecto de visibilidade, de objeto de contemplação, de estética visual. Como arte, bela arte, a Arquitetura busca emocionar, dirigir o olhar de quem passa por ela, de quem nela ingressa, de quem a ocupa ou se utiliza de seus espaços. Arquitetura é, antes de tudo, arte de visualização. E arte é modo de dizer, de mostrar, de se exprimir, é forma. Não basta à arte dizer ou mostrar coisas. Ela precisa fazer isto de algum modo, um modo que comova, alicie, faça ficar admirado quem vê estas obras. Desta forma, assim como o primeiro gesto do cinema seria escolher um espaço a ser mostrado ao espectador, toca também à Arquitetura posicionar sua obra, e consequentemente, o espectador em relação a ela, para que possa ser fruída de forma plena, como pretendida por seu…arquitetador.

O conceito de composição é outro que pode ser aplicado analogamente à Arquitetura, como arte do espaço. É certo que, enquanto tecnologia, a Arquitetura deve procurar ser orgânica, funcional, econômica, socialmente accessível a todos. Mas não lhe basta isto. Como arte, articula formas, as compõe, integra, numa funcionalidade inteligível porque sensível, que desperta emoção. Compor, em Arquitetura, é criar ambientes, assim como em Cinema. É estabelecer relações, dramatizar espaços. É criar o jogo do claro-escuro, é articular massas, profundidades de campo. Tensionar linhas, pontilhá-las, criar módulos visuais.

E o movimento? Há movimento em Arquitetura? Há. Se não da obra em si, pelo menos daquele que a contempla ou dela se aproveita. O espaço arquitetônico existe, antes de tudo, para ser ocupado pelo gesto humano, cheio de movimento. Por isso a obra autenticamente arquitetônica jamais é um presídio ou bunker protetor. Antes, é um espaço articulado que convida ao movimento, à proteção, manutenção e expansão da vida.

Finalmente, há montagem também em Arquitetura. E esta ocorre, quando são criados os espaços de circulação de uma obra. São estes espaços que integram os demais num todo orgânico. São como veias por onde corre a vida que ocupa a obra. Montar, em Arquitetura, seria acoplar espaços, através de um sistema de circulação agradável e funcional. Seria também vitalizar espaços, de modo que produzam efeito decorativo e, pois, igualmente estético, de paredes, tetos, pisos, passarelas.

Terminemos esta rápida análise das semelhanças entre Cinema e Arquitetura, dizendo que ambos servem à comunicação humana, pois se no cinema alguém mostra alguma coisa a alguém através da imagem, na Arquitetura, busca-se criar um espaço em que a convivência humana possa florescer na liberdade e no amor.

Arquitetura no cinema
Outro aspecto do relacionamento entre ambas as formas criativas de que ora tratamos é o da presença da Arquitetura dentro da obra cinematográfica.

Intolerance (1916)
Intolerance (1916)

Notável é a utilização da Arquitetura pelo pai da linguagem cinematográfica diegética (narrativa), o americano David Wark Griffith, em especial no seu grandioso Intolerence (1916), na parte dedicada ao festim de Baltazar, em que pela primeira vez aparecem na tela os célebres jardins suspensos da Babilônia. (ver o filme “Bom dia, Babilônia”, de 1987, dos irmãos Taviani).

Mas o movimento que antecedeu aos demais na pretensão de “sintetizar todas as artes” no cinema, nelas incluindo a Arquitetura, foi o Expressionismo Alemão, no final da década de 10 e em todos os anos 20, no século passado. O espírito da época não era risonho. Bem ao contrário. Uma grande guerra varrera o mundo e seu epicentro tinha ocorrido na Alemanha. Os artistas passaram a expor as chagas da razão humana em suas obras. Soltam seus fantasmas, proclamam seus medos. Assim, surgem os “golem” judaicos, os vampiros, os zumbis, os robôs de forma humana, as densas sombras e as luzes fortes de um expressionismo frenético.

Basta ver filmes como O Gabinete do Doutor Caligari (1919), obra coletiva de artistas, dentre os quais se contavam atores, cineastas, pintores e…arquitetos! Nela, os prédios, as casas, os monumentos e os espaços urbanos têm lugar extraordinário não só na trama, como principalmente na criação do clima de todo o filme. Num dos momentos mais dramáticos, o “zumbi” César rapta a noiva do personagem principal. Alucinado, a trôpega figura carrega a moça pelos tetos de uma Viena envolta nos alto-contrastes de trevas densas e luzes incisivas, através de telhados e paredes fora de nível e de prumo. A cena não teria tanta força se não contasse com a plástica das ruas e das casas estilizadas, tudo exacerbado, é claro, pelo constante uso da diagonal, como elemento que faz lembrar desequilíbrio e loucura.

Também é próprio do filme expressionista não se interessar muito por aquilo que diz, conta ou mostra, mas sim por

Metropolis (1930)
Metropolis (1930)

ocupar-se principalmente com retratar os estados d’alma que as coisas e os eventos produzem sobre o artista e, pois, sobre a platéia. Assim, o uso de grandes espaços vazios, de grandes massas de prédios e monumentos agressivos, criam o clima de angústia que o artista quer retratar. Fica também óbvia a presença da Arquitetura, e até de um urbanismo totalmente desumano, em filmes como Metrópolis (1930), de Fritz Lang (ele mesmo um ex-estudante de Arquitetura!).
E o modo expressionista de filmar parece ter-se tornado um verdadeiro “clássico” (no sentido de “obra com estilo bem definido e consagrado”) em toda a história do cinema. Há muito de expressionismo no maior filme de todos os tempos, o inesgotável e sempre moderno Cidadão Kane (1941), de Orson Welles. O palácio mandado construir pelo magnata e megalômano Kane retrata bem o mau gosto arquitetônico pelo estilo eclético daqueles que constroem apenas para ter a sensação de possuírem um poder faraônico muito acima de todos os mortais. Tudo o que há de estilo grandiloquente e pesado em termos de arquitetura foi utilizado pelo diretor de arte daquele filme para passar esta idéia de poder absoluto. Para isso, ele mistura, sem a menor crítica, estilos pesadões, num anacronismo absurdo. Talvez tenha sido este o caso de certo pós-modernismo precoce.

O uso da arquitetura como elemento dramático dos filmes perpassa igualmente outras escolas e modos de fazer cinema. Basta ver o que Michelangelo Antonioni, um cineasta do neorrealismo italiano, fez nos filmes L’Aventura (1960), Blow Up (1966) e Zabriskie Point (1970) ; por eles, chegou a ser chamado de “o arquiteto do cinema”, tal o modo como utilizava prédios, casas e espaços de circulação urbana como elementos essenciais de sua narrativa e dramática cinematográficas.
Alain Resnais usou, em “O ano passado em Marienbad” (1961), um antigo castelo barroco para servir de pano de fundo, ambiente e clima para retratar as volutas complexas e ambíguas da memória de um casal de amantes.

O francês Jean-Luc Godard, um dos principais mentores daquilo que veio a ser reconhecido como a nouvelle vague, deixou em seu filme Alphaville (1965) um belo exemplo do uso da arquitetura como elemento essencial de uma trama. Tratava-se de mostrar uma cidade de ficção, e Godard optou não por criar cenografias pseudo-futuristas, mas por usar de preferência a Arquitetura moderna de Paris, com seus logotipos e placas usados no dia a dia. O cineasta francês faz assim uma completa releitura de tais espaços, ao construir com eles uma ficção crítica, ácida, contra a ditadura da tecnocracia exercida por um cérebro central (Alpha-60), que impede as pessoas, sob pena de morte, de sentirem emoções.

Inferno na Torre (1975)
Inferno na Torre (1975)

Nos anos 70 (para falarmos de obras menores, mas de não pequena repercussão nas bilheterias), os filmes-catástrofe, verdadeiro instrumento de catarse utilizado pelos americanos para espantar os fantasmas da guerra do Vietnam, lançaram mão sistematicamente de grandes edifícios, para acentuar o clima escatológico, por exemplo, em Inferno na Torre (1975) e Terremoto (1976). Aqui, efeitos especiais caríssimos não conseguiram esconder a pobreza de criatividade no uso do elemento arquitetônico, apesar de o primeiro filme citado ser uma crítica frontal àqueles que fazem da construção civil um mero instrumento de enriquecimento rápido e sem escrúpulos.

Assim, é nos anos 80 que vemos reaparecer no cinema mundial a preocupação com a Arquitetura. Há um excelente exemplo inglês, em Peter Greenaway, com seu notável The Belly of An Architect (A Barriga do Arquiteto, de 1985). Greenaway retoma em seus filmes o hábito da vanguarda dos anos 20 de recriar todos os espaços dramaticamente, lançando mão em especial da sobreposição e da colagem.

Outra obra notável pelo seu esforço em tirar o máximo do recurso de composição da imagem cinematográfica é Blade Runner (O Caçador de Andróides, de 1981). Os prédios lembram Griffith e o expressionismo alemão, visto que a obra é um film noir (ou dark film) por excelência. O mesmo para a série de filmes Aliens e, mais tarde, na década e 90, para os de Batman.

Para terminar, não se pode esquecer o grande cineasta brasileiro Alberto Cavalcanti, (1897-1982), ele mesmo arquiteto de origem, que se iniciou no cinema em Paris, fazendo cenografia para o filme L’Inhumaine (de 1924) de Marcel L’Herbier. Cavalcanti veio a ser, nas décadas seguintes, um dos maiores cineastas, seja da França seja da Inglaterra (onde viveu durante a segunda grande guerra, produzindo documentários para os correios ingleses). De volta ao Brasil, no final dos anos 40, ele foi convidado para exercer a coordenação artística da então recém-fundada Companhia Cinematográfica Vera Cruz, de São Paulo. Voltou mais tarde para a Europa, onde continuou produzindo filmes até quase sua morte, em 1982. Cavalcanti é um exemplo vivo do perfeito casamento entre Cinema e Arquitetura.

Como fazer análise estrutural de um filme (pt1)

O que éFIF_2010_L_HAEGELI_salle_de_cinema_0026

Como o próprio nome diz, fazer análise estrutural de um filme consiste em descrever, por ordem de aparição na tela, as diversas partes que compõem a estrutura do filme em questão, indicando seus pontos e modos de conexão e/ou mudança, de parte para parte.

Por estrutura entenda-se um conjunto interrelacionado de sequências cinematográficas que formam o todo fílmico. Sequência é um conjunto de tomadas que se sucedem no tempo, porque colocadas umas após outras, em determinada ordem e com pré-determinada intenção de produzir significado e ritmo.

Como fazer uma análise estrutural

Fase de assistência ao filme e de anotação
Antes de mais nada, é necessário ver o filme ao menos por duas vezes. Na primeira sessão, assiste-se ao filme sem maiores preocupações a não ser vê-lo e saboreá-lo, por partes e no todo, como um espectador comum.

Na segunda ou terceira sessão, anota-se rapidamente o que for aparecendo na tela ou ouvido na trilha sonora, pormenorizando, com maior ou menor intensidade, segundo o momento do filme o exigir. Assim, num filme de ação, por exemplo, poderá haver uma perseguição de carros que leve 3 a 5 minutos e que mereça apenas a seguinte anotação: “perseguição de carros; termina com carro do bandido explodindo”.

Já outras sequências merecerão anotações mais pormenorizadas, se estes pormenores forem significativos para uma posterior análise da sequência em tela. É o caso de diálogos que esclarecem temas cruciais. Como se vê, esta anotação já é, desde seu primeiro momento, crítica e seletiva, de certa forma.

A avaliação do quanto cada sequência merecerá de anotação poderá ser facilitada pela primeira sessão do filme.

Esta primeira anotação, contudo, não poderá ser muito demorada ou crítica. Confie na própria intuição, seja bem “fenomenológico”, registrando com simplicidade o que se está vendo e/ou ouvindo. Não interprete ou acrescente nada.

Ao ver o filme várias vezes e ao fazer anotações, durante a projeção, apenas nos preparamos para a análise. É numa segunda fase do trabalho que se vai fazer a análise propriamente dita.

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Antes, porém, façamos um parêntesis teórico. Um filme “para TV” tem aqui sua primeira característica estrutural, que o torna, em geral, diferente dos filmes feitos para o cinema. O filme para TV apresenta partes claramente definidas, o que nem sempre acontece com os de cinema. A explicação é simples: todo filme de série de TV, de duração máxima de 45 minutos (se for de maior duração, será desdobrado em capítulos) deve ser interrompido, em geral de 10 em 10 minutos ou de 15 em 15 minutos, para que sejam inseridos os indefectíveis “comerciais” ou “mensagens dos patrocinadores do programa”.

Mas deixando de lado os seriados, digamos que 90% dos filmes para cinema são de fácil assimilação pelo público e, pois, bastante transparentes. Apenas os chamados filmes de vanguarda ou experimentais (alguns os denominam aristocraticamente “filmes de arte”) necessitam de um esforço maior de revisão ou reflexão, e até mesmo informação extra-sessão de cinema, para ser entendido e saboreado.

A grande maioria dos filmes estrutura-se via narração e/ou descrição. Ou seja, um filme, geralmente, é a história (estória) de uma pessoa, de um mito, de um grupo social, menos ou mais numeroso, num período de “tempo real” (tempo de relógio) ou mais curto.

A narração desta história consiste na apresentação de fatos concatenados sob a forma de antes-depois. Nos momentos de descrição, a sequência de imagens obedece à relação “isto-aquilo”, que permitirá aprofundar seja características do personagem, seja da ação mesma, seja das circunstâncias do local e dos fatos.

Chamamos a estes filmes, estruturados pelos princípios da narrativa e da descrição, de filmes lineares. Lineares, porque seguem uma linha-mestra à volta da qual a montagem se estrutura, mesmo que sejam utilizados recursos dramáticos aparentemente não-lineares, como os de “flash back” (“volta ao passado”). “flash ahead” (pré-visão).

Outra forma de manipulação do tempo narrativo é a inversão, alternância, durante todo o filme, de ações no “passado”, “futuro” e no “presente” imaginais. A linha-mestra poderá mesmo ser circular, para fazer tudo voltar, no fim, ao mesmo ponto inicial, como uma espécie de “eterno retorno”, ou simplesmente, para causar um impacto de repetição impossível. O que importa é que, em tais tipos de filme, o conteúdo, em geral, condiciona a própria forma de estruturação da obra.

Fase de redação da análise estrutural
A assistência à primeira sessão do filme (momento de síncrese, ou de síntese a-crítica), bem como a fase em que se faz anotações sobre o filme, permite-nos agora passar à fase de análise propriamente dita.

Em primeiro lugar, procura-se dividir todo filme em partes. Estas podem ser caracterizadas, com maior ou menor clareza, pela própria forma como é narrado o filme (pressupondo-se aqui uma obra linear, que se baseia em narração/descrição). Assim, a própria estória poderá indicar as partes em que o filme se divide.

Em geral uma estória é narrada na seguinte ordem:
– preparação (pressupostos, evento gerador, com apresentação dos protagonistas);
– ocorrência de uma complicação da trama com erupção de uma crise (ou colocação de
um impasse, de um problema);
– complexização máxima da crise: auge, onde as qualidades do herói (protagosnista) são exigidas ao máximo ou as torpezas dos bandidos são exacerbadas;
– ruptura do abscesso: um dos elementos em confronto supera o outro;
– final: novo status quo.

Eisenstein introduziu a dialética na narração:
1ª parte: tese
2ª parte: antítese
3ª parte: síntese

Há fórmulas também de impacto frontal: logo no início do filme, o espectador se encontra agredido por uma situação ou curiosa ou tensa ou violenta. Em oratória clássica, esta forma de iniciar um discurso é denominada “exordium ex abrupto” (abertura abrupta). Hitchcock gosta de sobrepor os letreiros de seus filmes a longos travellings, que vão descrevendo, em planos abertos, a cidade ou o local onde se passará a trama. Os planos vão se fechando, até que, terminados os letreiros, topamos, no mínimo em plano médio, por exemplo, com um cadáver. É o que ocorre em “I confess”, de 1958.
Há filmes todos narrados em flash back ou flash ahead, o que, de certa forma, causa o mesmo efeito de curiosidade inicial. A versão de 1946 de “Beau geste” é bom exemplo.Também ”Decálogo 1” de Kilovski (1984).

Utilizando a força da memorização do flash back, Orson Welles chegou a lançar mão de seis deles, dentro de um mesmo filme: “Cidadão Kane” (1941).

Um filme com Alain Delon, do francês René Clement (“En plein soleil“, de 1976) gasta sua meia hora inicial apenas para contar os vários momentos de “dolce vita” do personagem principal e seu amigo, muito rico. Apesar de tudo se passar nos lugares mais luxuosos da Europa, a trama vai ficando cada vez mais desagradável. Esta mononia atinge seu clímax, quando os amigos estão a sós, em pleno Mediterrâneo, passeando num iate. Sentados um defronte ao outro, o ricaço fala para o personagem encarnado por Alain Delon: “Puxa, você conhece tão bem minha intimidade, que se eu morresse você poderia tomar meu lugar, e ninguém notaria.” Alain retruca: “É verdade”. E enfia-lhe um facão na barriga. Os espectadores saltam em suas poltronas. Por todo o resto do filme ninguém desgrudará os olhos da tela, a atenção e o interesse estarão no nível máximo. Esta uma das versões cinematográficas do romance de F.Scott Fitzgerald, O Grande Gatsby.

Todos estes exemplos querem apenas demonstrar uma coisa: não existe fórmula para se estruturar um filme, nem sequer (analogando com a poesia) uma espécie de métrica ou proporcionalidade rítmica pré-determinada, que produza estruturação fílmica. Pelo contrário: praticamente cada filme que não seja mera cópia industrial de outros, mais criativos, cada filme tem sua estrutura e ritmo próprios. Isto é que torna a análise estrutural uma tarefa interessante e também ela criativa.

Interpretando as anotações
Foram feitas anotações e definidos os “pontos de dobradiça” do filme (plot), isto é, foram caracterizadas as suas partes. Agora, podemos interpretar ou comentar as anotações feitas.
Serão observados, em cada parte ou sequência, os seguintes itens:
1. Uso e função de planos, os vários tipos de composição, movimento (de imagem, de câmara), tipo e função da montagem.
2. Além desta análise da linguagem cinematográfica, importa observar outros elementos como: perfil de cada personagem principal, trilha sonora (música e ruídos).
3. Diálogos mais importantes.
4. Finalmente redige-se uma sinopse ou síntese do filme.

Com isto será possível achar-se um objetivo ou ideia central, que será a resposta à pergunta: “De que trata o filme?”

Por exemplo, caracterizar um ou mais núcleos à volta dos quais gira toda a obra. Em “Cidadão Kane”, toda narração se desdobra em função inicialmente, da pergunta-chave: “Que é Rosebud?” Este é o pretexto, bastante superficial na aparência, que serve de ponto de partida de uma das maiores obras cinematográficas de todos os tempos.

Já se falou em Eisenstein. Seja em “Encouraçado Potemkin” seja em “Outubro”, a tensão percorre o ar o tempo todo. O filme respira luta, luta entre revolucionários e contra-revolucionários. A díade tese/antítese, que permite o processo dialético se desdobrar numa síntese (por sua vez, provisória), tudo cheira a polêmica e eterno movimento, como a filosofia e visão de mundo que sustenta o filme.

Também aqui há espaço para se ressaltar a forma contextual de interrelacionamento entre as partes, o que torna o filme compreensível, como um todo. Esta percepção de totalidade permitirá que cheguemos à última parte de nossa análise estrutural.

Esboçando uma sinopsecinema-svg
A análise estrutural termina com uma sinopse ou “visão de conjunto” do filme. Note-se que sinopse não é mero resumo do conteúdo de uma estória ou narrativa. As intenções superficiais e profundas (se houver) do diretor do filme deverão constar da sinopse, que nada mais é que a resposta à pergunta: “De que trata o filme?”.
A sinopse tem de ser um retrato completo mas esquemático da proposta fundamental do filme e da forma como ele é apresentado ao espectador (o “o que” e o “como”).

Análise estrutural e crítica cinematográfica
Como já deve ter ficado evidente, até o presente momento o filme não foi avaliado nem propriamente adjetivado. Tratou-se apenas de saber de que trata e como trata o filme.
Não o dissemos antes, mas parece óbvio que confiar, logo de saída, na própria intuição (especialmente se o filme foi visto uma só vez), pode ser algo arriscado, incerto, e até mesmo desonesto. Preceder a crítica de uma análise que procure não deixar nada obscuro ou dúbio (na medida do possível) a respeito seja das intenções do diretor seja daquilo que realmente a tela apresenta ou deixa transparecer, fazer isto parece o melhor caminho para se minimizar ruídos mais graves no processo comunicacional.

Somente agora pode-se passar à crítica propriamente dita.

*****

UM EXEMPLO DE ANÁLISE ESTRUTURAL
A JANELA DO TEMPO (curta PUC-Minas – 1987)

IDÉIA: Um homem assiste eternamente à sua própria morte.
Estrutura: circular.
TRATAMENTO:
INTERNA: ESCRITÓRIO: Homem de branco, numa escrivaninha, exibe cartazes : é a ficha
técnica do filme. Homem vai até pequena sacada do escritório.
EXTERNA: o que o homem vê da sacada : PAN da cidade (embaixo, estacionamento vazio).
INTERNA (na sacada): Ele rasga cartazes e os lança ao ar.
EXTERNA: Contra-campo, do ponto de vista do estacionamento vazio: vê-se que o homem está num
edifício, por volta do 101 andar. Os cartazes ainda voam.
INTERNA: Contra-campo, (com a câmara ao lado homem): vê-se que ele percebeu alguma coisa
lá embaixo.
EXTERNA: Da sacada, EM CÂMARA SUBJETIVA, vê-se o mesmo homem de branco de pé, no
estacionamento vazio. De repente, um carro de luxo sobe a rampa, pára junto ao homem.
Mulher bem vestida desce do carro: aponta arma para o homem. Atira. O homem cai.
INTERNA: Homem, na sacada, espanta-se e corre, apavorado.
Chega ao elevador. Chama o elevador. A luz dos números dos andares demora a passar.
Homem invade elevador. Elevador pára de andar em andar.
Homem empurra todo mundo, quando elevador chega ao térreo e sai.
EXTERNA: Homem corre pela rua. Homem sobe rampa do estacionamento.
Visão subjetiva do homem: tudo está vazio, não há nada nem ninguém no estacionamento.
Vê-se o prédio: homem, na sacada, joga os cartazes para o ar.
Câmara se vira: carro de luxo acaba de subir a rampa do estacionamento e se aproxima. Pára.
Abre-se a porta. Pé de mulher pisa no chão. Mulher sai do carro. Saca uma arma. Atira.
Câmara (subjetiva) treme e cai de lado.
Homem morto no chão.

FILME “A JANELA DO TEMPO”